sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Luís Veiga Leitão, A UMA BICICLETA DESENHADA NA CELA.

Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste.

Aqui,
onde o dia é mal nascido,
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido...

Bem haja a mão que te criou !

Olhos montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.


Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, M. Alberta Meneres e E. M. de Melo e Castro, Livraria Moraes Editora, 3ª Edição, Lisboa, 1971, pp. 305 e 306.

António Ramos Rosa e Herberto Helder.

domingo, 26 de dezembro de 2010

A Um Conhecido Carioca.

A tua mesa simples,
meu bom amigo,
seria mesa de mulher?

Mesa de mulher,
sim.
Tu não precisavas do estofo,
a toalha,
os aparatos de Natal.

A noite lá fora,
estarias só nessa noite especial,
essa noite tão tua?

As bebidas de tostão,
velho amigo
e a tua melancolia,
seria?

Uma noite sem igual?

Como te oiço rir,
nessa noite sempre tua
e que tu armaste
para a tua solidão...

Roberto Carlos?...
Já foi,
já era...

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Juventude.

Atravessaste tão depressa
a estrada,
a janela entre os arbustos
e o teu vulto fugaz,
o rosto,
o nariz grego,
a testa de Anatólia,
o sorriso pirata
das barcas do Bósforo.

Veloz, singravas por atalhos,
vias florestais, encostas tão íngremes,
como a solidão em que vivias,
o teu segredo, a noite escura.

O casaco cruzado,
a mala.

O teu silêncio,
o teu segredo
na noite escura,
o marulhar da água,
a luz dum sorriso,
as estrelas.

O carro,
tão rápido.

O Sonho 2.

A noite com cheiro a estopa,
tão cedo no camarote,
mas tão de noite.

O ruído permanente do ventilador.

A luz acesa,
a porta frágil,
plastificada.

A quilha rasgando
o sonho.

Os chocolates?

Sentiam-se pelo aroma,
logo de manhã.

E o café.

A tosse seca
de um cigarro.

Fuga para o Egipto, de Fra Angelico.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Desgosto 2.

A minha vida hoje
é uma bruma entre penedos,
leves colinas geladas
e penhascos de cinza,
enevoados.

Tive o coração cheio,
a imagem sagrada,
a figura pagã.

As fardas bucólicas
dos franceses,
a glória da alvorada.

Hoje, volto ao lusco-
-fusco a espevitar a lareira
e sonho.

E sonho.

Não tenho segredos.
Sinto a garganta
apertada.

Que me interessa
que a turba
chapinhe.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Feliz Natal!

Este frio gelado de Dezembro
e as luzinhas de Natal
acesas pela madrugada fora.

O vaso
e o seu vazio.

Acendo um cigarro
e rápido se formam geometrias
na espiral do fumo.

Mas está quente aqui,
nesta sala confortável.

Penso com ternura nos amigos,
sem que o saibam.

Inocentes,
devem dormir agora.

E contemplo a noite,
distraído.

Demoro-me entre
um anjo
e uma baixela.

" Só se pode atingir a plenitude
através do equilíbrio. "

Feliz Natal
e um Excelente Ano de 2011!

domingo, 12 de dezembro de 2010

Reunião.

- A Manuela não viu ninguém?

- O Luís inflamou-se?

- Era a única Manuela,
Luís.

Só estava a Manuela.

A minha Manuela,
a minha prima Manuela,
apetece-me tanto recordá-la...

Apetece-me que agora a sala
cheire a este aroma
de tinta-da-china
e café.

Areia
e baloiços.

E tu não tens nada com isso.

Tu não gostas
de poesia.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Revoada.

Quero ver-te amanhã,
para te falar do fogo,
o fogo que queima,
abrasador.

Agora não,
estamos no Inverno.

Falar-te da Praça
do Campo Pequeno e ver-te,
só a ti.

Ver-te
num rectângulo verde
e azul
e branco.

Nos arbustos,
junto ao ringue.

Uma vez,
numa tarde de Domingo,
um malabarista manuseava
tochas acesas de fogo.

As línguas das chamas
pareciam espíritos.

Mas ver-te,
só a ti,
a sorrires-me.

Só a ti.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

John Lennon.

A vida branca dos jardins
e uma voz ao telefone.

O Paraíso dos fatos,
dos botins de verniz preto
e o Rolls-Royce.

As túnicas que vesti,
de linho da Índia.

O aroma do jasmim.

O protesto nu,
mensagem curta,
alguma inocência confirmada.

Viveu o seu próprio futuro
e foi bom tudo isso.

Ouço-o outra vez ainda,
com o mesmo prazer planetário
e sorri,
ou tosse
e é o primeiro.

Sarcástico, alegre.

Depois, um dia,
o vento... as estrelas...

Florbela Espanca, ?

?

Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros,
Sem nos dar braços para os alcançar?!...


Obras Completas de Florbela Espanca, Volume VI, Cartas 1923-1930, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1986, p.154.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

SETE CANÇÕES DE DECLÍNIO, de Mário de Sá-Carneiro.

7

Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
- Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a posso ir apanhar!

Paris - Julho e Agosto 1915.


Obra Poética de Mário de Sá-Carneiro, Introdução, Organização e Notas de António Quadros, Publicações Europa-América, Lisboa, s.d., p.137.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Tu Não Estás.

É uma espécie de morte
a falta da tua companhia,
ao estacionar o carro.

As sombras das faias
agigantando-se no passeio.

Vou jantar um bife
no meio das arcadas.

Pousar os talheres
depois da sobremesa.

Irremediavelmente,
viver o mistério da tua ausência,
numa noite cheia,

noite luminosa,
uma noite de Lisboa.

Aqui, um dia, há muito tempo,
fotografaram uma carroça
a descer a avenida.

Fait-Divers.

Estavas mesmo ali a seu lado,
podias beijá-lo no pescoço
e ficar a ouvi-lo falar.

Em vez disso, resolveste recuar,
responder a alguém,
deixar acabar.

Ele tinha as orelhas a arder
quando foi embora.

Tu passaste a língua
pelos lábios.

Foi então que
olhaste para mim.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Mas Que Chatice!

Se o eco absurdo dessas vozes zangadas
ainda te aflige, ou a sua falta de rasgo te inquieta,

a exiguidade de meios, os poucos gastos,
o ganho quase nulo dos idiotas que se comprazem
em serem duma linhagem de barracas,

então vira-te contra os poderes,
os discursos manhosos dos senhores
da mó-de-cima,
desliga os noticiários por hoje
e ouve música,
ou apenas
o silêncio.

Depois saberás onde estar.

As Luzes.

As luzes contra a noite,
luzes dispersas e coloridas.

As pequenas luzinhas tracejadas
do avião invisível, que se lança
na pista e ao longe se ergue,
com um ruído forte de ventoinha.

As luzes ainda, luzes fracas
e tristes, na desértica zona industrial
a oeste da cidade.

Sei que os restaurantes da Baixa
se animam a esta hora, de luzes
feéricas, embutidas ou quebradas
por abat-jours alegres.

A luz, naquela janelinha
sem graça, pela noite fora.

As luzes apagadas
no bairro humilde.

As fitas de luzes da ponte alta
reflectidas na água escura do rio.

É uma luz calma,
a que me ilumina as páginas
deste livro que leio.

Por ela me deslumbro
e nem reparo na passagem
das horas.

Na escuridão, ouve-se o vulto
de outro avião que parte
para mais um voo internacional.

Só se vê a linha das suas
vigias acesas.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Fernando, 30 de Novembro de 1935.

Se tu tivesses,
Fernando,
ouvido a canção dos Abba,
talvez te risses agora,
como eu me rio.

Estou tão cansado.

Tenho a cabeça
naturalmente cheia,
como sempre a tiveste também.

Cansado de mim mesmo,
pois então.

Cansado da Rhetorica
do Padre Figueiredo,
como tu também.

" Tenho hoje arrastado pela rua os pés e o grande cansaço ", ( 1 )
Fernando.

Deixa-me ao menos ouvir Fernando,
deixas?


( 1 ) Fernando Pessoa,  Livro do Desassossego por Bernardo Soares, Ática, 1982, Lisboa, p. 169.

sábado, 20 de novembro de 2010

A Feira. ( Para Arthur Rimbaud ).

As crianças correm para galgar
a pista dos carrinhos eléctricos.

Luzes estonteantes e um ruído infernal
abafam a voz rouca e fina,
que as convida para uma nova viagem.

Surgem depois as mulheres, suas mães,
espartilhadas, redondas, deslavadas,
nos vestidos vistosos de feira.

Vêm calmas e seguras,
agarradas ao pauzinho da maçã
cristalizada e do algodão doce.

Uma traz tatuada no ombro direito
uma sereia nua, de olhos azuis
e grandes pestanas,
grandes e grosseiras.

As crianças, agora,
deliram, tontas
e afogueadas.

Rodam tão depressa
que nem se vêem.

O Avião. ( Para Raymond Roussel ).

O bimotor surge da falésia,
quase não se vê porque o Sol
o esconde num espelho de luz.

Se não fosse pela pirueta que o faz
rasar a água e o mostra rangendo
de nova força ascensional,

dir-se-ia que na estrada próxima
passava um carro vagaroso,
anunciando por um megafone estridente
a estreia do circo, nessa noite, na vila.

Relatório de bens, de José Tolentino Mendonça.

Esta é a oferta:
prata e cobre, e linho fino,
e peles de carneiro tingidas de vermelho,
e peles de texugo,
um cordão de trinta côvados
e madeira preciosa

Na dobra escondida do mar
uma campainha
de ouro


( José Tolentino Mendonça, O Viajante Sem Sono, Assírio & Alvim, Setembro de 2009, p.44. )

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O Anjo, de Robert Walser.

Um anjo como este o melhor que tem a fazer é ficar à espera de que alguém lhe diga que precisa dele. Muitas vezes, leva mais tempo do que ele pensa; ele tem mesmo de ser mais comedido, não deve julgar-se insubstituível. Pela minha parte, não gostaria de estar no lugar daquele de quem fiz um anjo. Fiz dele um deus, para que ele nunca mais viesse ao meu encontro em parte alguma, para que fosse imóvel como uma imagem e eu pudesse dirigir o meu olhar para ele conforme precisasse ou desejasse. Quase me faz pena que ele tenha julgado que eu sou curioso e que vou andar a correr atrás dele, agora que eu quase o trago metido no bolso ou que o tenho agarrado a mim como se ele fosse uma fita amarrada em redor da minha testa. Já não sou eu quem vai ter com ele, é o valor dele que me envolve, é o fulgor da sua luz que me rodeia. Quem soube dar soube também tomar para si. Tanto uma coisa como outra têm de ser praticadas. Ele nasceu da compaixão, mas pode bem acontecer que eu, o implorante, brinque com ele. Ele duvida, inquieta-se. Eu umas vezes creio, outras descreio, e ele tem de levar isso com paciência, esse querido.


Robert Walser, A Rosa, Relógio D´Água Editores, Janeiro de 2004, p.49.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Segredo 2.

Sagrados são os meus sonhos,
porque são só meus.

Sagrados,
os cumes,
os grandes abismos.

A luz é sagrada,
a luz que nos ilumina.

A luz que aquece,
que vivifica.

Sagrada a infância,
oh, a infância...

A família?
Sim, talvez seja, sim.

As palavras, pois.
Que outra forma tenho
de me ligar ao Mundo?

O meu filho
e é um desabafo meu.

Depois,
o que se vende e troca,
o desbarato das emoções
e dos sentimentos,
o corpo,
o que se perde,
nada disso tem significado.

Nada disso importa.

Podes expor,
deixa que eu o faça também,
não serve de nada,
não presta.

domingo, 14 de novembro de 2010

Plenty, Plenty Soul.

Preciso ver da janela da sala
as folhas dos plátanos que espelham
a luz do Sol.

Esta quietude sem palavras
na manhã de Domingo.

O gato estirado num rectângulo
luminoso, no chão.

A rua deserta.

A floresta de enganos
esquecida algures.

Pode não ser ainda
o grande dia
do meu reencontro.

Mas sinto a paz
envolver-me
e tomar-me o espírito.

Vivo o que sei
como um iniciado vive
o grande conhecimento
universal.

A forma clássica
do pensamento.

Vivo sem subterfúgios,
a intelorância do gratuito.

E deixo-me estar
a bebericar o café.

Milt Jackson:
Plenty, Plenty Soul.

sábado, 13 de novembro de 2010

Os Tristes.

Tristes são os campónios, coitados,
quando não sabem onde estão.

São tristes os faróis,
na solidão das barras,
que iluminam a noite
com a sua luz circular.

A pequena burguesia de Raul Brandão,
passeando pelas latadas e entre os milheirais.

As árvores destinadas a ser tristes,
como os resistentes ciprestes.

Os adolescentes convencidos
da sua importância,
que morrem de tédio quando ficam sós.

As pessoas que ganham o céu
se lhes falou uma mulher bonita,
uma mulher conhecida.

( Eu próprio, quando via
a Laura Alves no café... )

Tristes são as famílias insípidas
que vivem com uma filha já adulta,
para quem ninguém olha.

Os cães,
tristes por viver.

A chuva que cai
pela noite fora.

A doença,
que torna as pessoas tristes,
mesmo que não pareçam.

O tédio de tudo.

A arrogância solitária
que há nos passos apressados
de quem cruza a rua
de madrugada.

Anjo da Guarda, de Nuno Júdice.

O anjo que desce do espírito com a tarde,
que queima o chão da página, que
mancha de orvalho os campos do inverno,
onde a erva insiste em manter-se,
tem o olhar cansado do infinito. Pego-lhe
na mão, ouvindo o arrastar de asas
por trás de mim, enquanto avançamos
pelo alcatrão. É certo que um anjo não
foi feito para andar; e que os seus passos
desenham um voo desajeitado na hesitação
bêbada de um rumo. Mas sento-o na
cadeira da taberna; ponho à sua frente
o amargo cálice da aguardente matinal; e
vejo-o engolir até ao fundo as gotas de
fogo do inferno, saboreando o sol que
desponta, por um instante, de entre as
nuvens que o expulsaram.

( Nuno Júdice, Pedro , Lembrando Inês, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Fevereiro de 2009, p.13. )

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Turcifal 2.

Fui só ao Turcifal almoçar,
pão, pão, pão!

Fui só almoçar,
pão, pão!

Aladydotcom,
yeahhh....

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

L.P. ( Para Ti )

Às vezes, tu apareces no meio das tintas,
o teu sorriso inimitável, no meio dos frascos,
das telas e de um aroma forte a aguarrás.

A água das manchas e a teberentina forte
dos padrões de cor.

E sempre o teu sorriso que
bebe os teus olhos,
tão únicos.

Às vezes, repara,
és tu outra vez,
como no retrato de grupo,
a menina discreta,
a menina do fundo.

E o teu sorriso,
sempre tão puro,
sempre tão teu.

Vais ler agora?

domingo, 7 de novembro de 2010

Sakineh Ashtiani.

Mas que mania,
Sakineh Ashtiani,
não há deus nenhum,
em lado nenhum.

Há só uns homens de barbas,
alguns, uns dez-reis-de-gente,
que impõem dogmas e lendas,
para não sabermos pensar.

Isso de haver deus,
é só passado,
Ashtiani.

O que vemos pelo Mundo,
ou não,
é apenas fome,
miséria
e dor.

E gente satisfeita,
porque não?...

Se o for realmente...

Tudo o mais
é essa terra árida
donde só saem pedras.

E a vida mesquinha
que te obrigaram a viver.

Voa, Ashtiani, voa
como voam as aves,
deixa o teu pensamento
ser um céu.

A terra onde vives
parece só ter pedras
e homens cinzentos.

Há tanta gente
que, como tu,
não é feliz...

Agora, o deus...

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Novembro.

Depois dos dias de furiosa tempestade,
de um cinzento descuidado e sujo
pelas ruas alagadas,
os olhos cerrados ao fumo da água,
sem luz, nem vivalma,
 
Novembro surge nas fumarolas
das castanhas assadas
e do vinho doce.

Umas senhoras bem ataviadas
compram o primeiro bolo-rei
na pastelaria do bairro.

Trazem as notas enroladas
em pequenos porta-moedas
como o de verniz preto,
da mais idosa, quase trôpega já.

domingo, 31 de outubro de 2010

Plágio Descarado De Ruy Belo, O Grande Poeta.

O mar rebenta,
cor rubro-saturno,
a tormenta cerra o céu,
um sol branco sem aves,
a tua imagem
com algas e corais,
o meu amor.

A solidão,
névoa nocturna,
mensageira da chuva,
da tormenta,
prelúdio e fuga.

Melancolia,
olhar imerso
na tristeza.

Tu foste
um discreto gesto
na eternidade
e indefeso a ti me confiei.

Louco amor,
furor,
ATRAVÉS DA CHUVA E DA NÉVOA,
ó meu amor
o teu olhar,
o meu olhar
o teu amor.

( Cut-up aleatório de versos da obra O Tempo Das Suaves Raparigas E Outros Poemas De Amor, de Ruy Belo, Assírio e Alvim, Lisboa, Julho de 2010. Impossível a identificação das páginas. Será que o autor me perdoaria? )

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Em Memória de José António Morais, Meu Querido Amigo.

Não foi aqui que te encontrei,
nestes campos de Alijó,
pedregosos e em declive,
revendo silvas nos bolsos,
sonhando estoiros enormes,
com simples fósforos.

Nem no areal da ilha,
ao nascer do dia,
cheios de cansaço e sede.

Ou em alguma roça,
sozinho,
vestido o capim
como um agricultor.

A caminho de Murça
ao cair da manhã,
por estes campos agrestes
de oliveiras
e castanheiros,
não foi.

Entre vinhas perdidas,
vinhas encontradas,
entre os seixos
e os granitos,
não.

O teu sorriso matemático
de juventude,
não foi aqui que encontrei,
foi por outro acaso,
foi noutro Mundo.

E recordo em ti o acne,
a marcar-te o rosto
para sempre.

Perdido entre os muros
ficou o teu Tempo
muitos anos,
sem eu te ver.

E tu, sorrindo, amavas
a Terra, as flores, tantas, os filhos, lindos,
a mulher.

Todos eles, afinal,
bailavam no teu sorriso de criança,
o mesmo sorriso com que foste.

Sabes, querido amigo,
estou aqui,
sou eu.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Iniciação.

Repeti os gestos do poeta
com a mesma precisão dum sonhador,

porque teria de olhar para o céu,
de olhar as nuvens,

de trazer o vento
e o voo das aves
para os versos do poema.

A dor de quem sofre?
As injustiças muitas?

Camões passando fome na gruta de Macau?

Eu queria escrever
sobre o vazio das mãos abertas,
o olhar absorto,
o corpo imóvel.

Os gestos dum académico,
nunca.

domingo, 17 de outubro de 2010

Arruda-dos-Vinhos.

São alfaias e tractores
estacionados nos laranjais.

O declive sumptuoso
de ter.

Vinhas plantadas
em redor da grande casa,
ao Sol de Outubro.

As estradas serpenteando
o coração de Arruda.

O sabor do azeite quente
e do alho.

Na soalheira cidade
interior.

sábado, 9 de outubro de 2010

O Turcifal.

Há mais do que um desvio para o Turcifal,
na estrada
que vai para Torres Vedras.

Tenho sorte por ter escolhido
este caminho rodeado de árvores,
ao Sol de Agosto.

Junto à igreja,
( mas que monumentalidade,
era preciso tanto?... )
há um restaurante
e são horas de almoçar.

Vim ao Turcifal
para almoçar
e depois seguir viagem
de regresso a casa.

O dono do restaurante apresentou-me
a um rico da terra
 e deu-me o calendário das festas.

Mas não pude continuar a ouvi-lo,
queria chegar a casa depressa.

Há horas que eu andava no carro
dum lado para o outro, e agora
queria voltar para Lisboa.

Fui só ao Turcifal para almoçar,
mais nada.

Oração.

Precisava de retomar
a leitura de grandes
romances clássicos,

as luzes acesas pela noite fora,

contra a cegueira destes tempos
de crise e abandono.

Uma solidão repleta
de figurinhas animadas.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O Aluno Especial.

Olha só o que o puto quer,
pá,

Static-x,
ahahah.

A Poesia.

Nasceram do nada
estas palavras.

Soltaram-se à procura de uma voz,
uma outra voz viva.

Ou só do seu sentido.

Como se fossem mudas.

Uma voz doce,
virada para si,
quase inaudível.

São estas palavras que dão um nome
à minha serenidade.

Digo-as baixinho
e depois sei estar.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Interlúdio.

Um avião faz-se aos céus,
desviando a rota para Sul.

O aeroporto da Portela é aqui muito perto.

Estou à saída da A1.

Tudo o mais
é Europa,
tudo o mais é o Mundo,
é diferente.

O avião?

Já não o vejo...

A Lagartixa e o Jacaré.

Um erro brutal,
o devaneio.
A distracção é doentia.

O tempo que se dedica
a cada pormenor.
A pequena minúcia,
a minudência,
é, é...

Tudo o mais é imaginação,
é desvario.

É um desvio da razão,
um erro de consciência.

Só os poetas,
só Fernando Pessoa...

Frustração.

Foi frustrante o resto do tempo que passámos ao almoço.
Sentados no murinho, a pessoa do meio não se calou mais
e estava aborrecida, pelo menos pareceu.

Um avião fazia-se ao ar, desviando a rota para Sul.
A Portela é aqui tão perto, estamos à saída da auto-estrada A1,
tudo o mais é Europa, tudo o mais é o Mundo, é diferente.

Nós não, nós não queríamos ver, estávamos ali de castigo,
estávamos só a olhar. Depois o campo parecia um descampado,
via-se o lixo das construções. E ao longe, empertigados na ravina,
uns prediozitos pareciam querer ser gente e ficar a olhar,
para nós, nós ali os três.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Bagaço em Setembro, de Cesare Pavese.

As manhãs passam claras e desertas
nas margens do rio que de madrugada se enevoa
e escurece o seu verde enquanto espera o sol.
O tabaco que vendem na última casa
ainda húmida, na orla dos prados, tem uma cor
quase negra e um sabor sumarento: o fumo é azulado.
Também têm bagaço, da cor da água.

Chegou o momento em que tudo pára
e amadurece. As árvores ao longe estão quietas:
tornaram-se mais escuras. Escondem frutos
que ao mínimo abanão cairiam. As nuvens esparsas
têm uma polpa madura. Ao loge, nas avenidas,
todas as casas amadurecem à calidez do céu.

A esta hora só se vêem mulheres. As mulheres não fumam
e não bebem, sabem simplesmente estar ao sol
e recebê-lo tépido, como se fossem frutos.
O ar, cru por causa da névoa, bebe-se aos golos
como bagaço, todas as coisas exalam um sabor a bagaço.
Até a água do rio bebeu as margens
e macera-as no fundo, sob o céu. As ruas
são como as mulheres, amadurecem paradas.

A esta hora todos devíamos parar
na rua e ver como tudo amadurece.
Há até uma brisa que não altera as nuvens,
mas que basta para dirigir o fumo azulado
sem o romper: é um novo sabor que passa.
E o tabaco impregnou-se de bagaço. E assim as mulheres
não serão as únicas a gozar a manhã.


Cesare Pavese, op. cit., pp.163 e 165.

Mulheres Apaixonadas, de Cesare Pavese.

As raparigas descem para a água ao fim da tarde,
quando o mar se esvai, estendido. No bosque
cada folha estremece quando emergem prudentes
na areia e se sentam nas dunas. A espuma
alonga-se em jogos inquietos na água distante.

As raparigas têm medo das algas escondidas
sob as ondas, que se agarram às pernas e aos ombros:
o que está nu do corpo. Sobem rápidas para as dunas
e chamam-se pelo nome, olhando à volta.
Também as sombras no fundo do mar, no escuro,
são enormes e vêem-se mexer, incertas,
como atraídas pelos corpos que passam. O bosque
é um refúgio tranquilo ao pôr-do-sol,
mais do que o areal, mas as raparigas morenas
gostam se sentar à vista de todos, na toalha em desordem.

Estão todas encolhidas, apertando a toalha
contra as pernas, e contemplam o mar plano
como um prado ao fim da tarde. Ousaria alguma delas
deitar-se agora nua na erva dum prado? Do mar
saltariam as algas que afloram os pés,
para agarrar o seu corpo trémulo e envolvê-lo.
No mar há olhos que às vezes reluzem.

Aquela estrangeira desconhecida, que nadava de noite
sozinha e nua no escuro quando muda a lua,
desapareceu uma noite e nunca mais volta.
Era alta e devia ser duma brancura deslumbrante
para que do fundo do mar aqueles olhos a alcançassem.


Cesare Pavese, Trabalhar Cansa, Edições Cotovia, Lisboa, 1997, pp. 89 e 91.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A Chuva.

Cai agora a chuva,
monótona e silenciosa.

Vejo-a na contra-luz do candeeiro,
persistente e fresca, quase transparente.

Eu esperava por este dia,
por nenhum motivo especial.

Apenas pelo prazer de ver tudo lavado
e nítido, a rua, as árvores, os carros.

E por sentir que assim a Vida se renova
e o Mundo avança na sua lenta rotação.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Sem Palavras.

O teu silêncio talvez seja
o ulular sombrio de aves
nocturnas,
ou a fluidez serena de gaivotas
que rasgam o vento,

não sei...

Sei que emudeci,
inquieto,
como se já não respirasse
nesta metrópole imensa,
e, desorientado,
não encontrasse o formigueiro,
a avenida circular, a praça,
o regresso.

Dei comigo a descer a falésia
e a correr para o mar.

Então sim, pude ouvi-lo,
a esse imenso oceano,
pensativo, teimoso,
rumuroso,
ruminante.

E soube que não sou feliz,
sem ter pronunciado
uma única palavra também.

Irène, de Alain Cavalier.

" Vinte e cinco páginas de ternura lêem-se num segundo. "

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Em Setembro, sim.

O pessimismo natural
nos momentos de maior fadiga.

O que se deita ao esquecimento,
ao tecido vegetal.

Uma vez,
os olhos piscos de poeira,
o desalento ao estacionar,
o cansaço desmedido
que tudo reprova,
de estéril.

Como se a cidade se desfizesse
em cacos de louça,
na minha cabeça.

Não,
as acácias agora adormeceram,
transidas,
num pingo.

E já não brilha e ofusca
o Sol, ao fim da tarde.

Agora está tudo mais seco.

E não se conversa,
nem nada disso.

Agora, anda tudo muito calado
e coloquial.

Em Setembro, sim.
Ainda.

O Oeste.

Não,
não é o desapego da distância,
mas só não poder chegar,
tão depressa.

A constelação de momentos passados
que nos encheu de felicidade.

E as aldeias ao longe,
a paz da cal nos muros.

Vou passear para o forte,
nem que seja amanhã.

As pessoas que o fazem
já por lá andam.

E vou sentir a espuma no rosto,
com que o oceano nos salpica.

Água,
vou beber água.

domingo, 12 de setembro de 2010

11/9. 2.

Sunshine.

Towers of light.

Open clouds,
freedom
whisper.

Sounds of music.

Roaring
clouds,
wings
of angels.

Sunshiny
sky,
the day after.

No clouds,
in this open air.

sábado, 11 de setembro de 2010

11/9.

Anjos sem rosto
que eu vejo,
talvez
desenhados nas nuvens,
espreguiçando-se
lentamente,
talvez despedindo-se
de mim
também...

I love you,
tantas vezes repetido
num derradeiro
telefonema,
um último s.m.s.

Anjos despedaçados,
desfeitos
inocentes.

I love you,
my angels,
my eyes.

Sunshine.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Setembro 2.

Há muito tempo que estou sozinho,
porque sim,
porque quero.

A empregada é para mim
uma dor-de-alma,
desarruma-me tudo,
recoloca depois como quer
e nunca como estava.

Mas regresso a casa
depois dela ter vindo
e reconforta-me o aroma a lavado,
a passado e limpo.

O gato envelheceu
e dorme cada vez mais,
por isso
já não estraga,
já não parte,
nem nada.

Sou cada vez mais eu,
nesta casa ampla,
neste Mundo só meu.

Aqui me desprendo
do passado,
da memória,
influências,
actividades
e sonhos.

É apenas Setembro
que entra pelas janelas.

A temperatura fresca,
os tons rosados,
a luz coada,
o silêncio.

É bom...

Setembro
dentro de mim,
dentro de casa.

Setembro
no sono do meu gato.

domingo, 5 de setembro de 2010

Setembro.

Poentes de Setembro,
cor de azeite,
como em António Nobre.

Fins de tarde
da cor de maçãs
e parras de videira.

O vento fresco que varre os campos
e sacode as aves para sul.

Um filme de Woody Allen,
um poema,
música,
September Songs.

Barcos velozes a motor
que se afastam no alto-mar.

A noite que se antecipa
ao sonho.

Virgem,
o amor.

sábado, 28 de agosto de 2010

At The Drive-In.

De frente para o rio,
na noite escura,
só uma parte de ti
me fez companhia.

Esse lado íntimo teu,
que não entrevi,
onde estaria?

Eu olhava o rio,
olhava a noite,
distraído.

No entanto,
ninguém diria,
se lhe fosse dado observar,
que aqueles dois,
no automóvel estacionado,
de frente para o rio
cor de azeviche,
já não eram mais
os príncipes felizes
de um conto muito antigo.

Foi por educação
que ali ficámos,
mas já sozinhos,
os dois.

Foi por amizade
que ali ficámos.

Arroz de Tinta.

O arroz de tinta de lulas,
cogumelos, gambas e vieiras,
num jantar informal,
num restaurante dos arredores.

Foi preciso atravessar o Tejo
ao cair da tarde,
nessa ponte cosmopolita
ao rés da água,
que realça as cores do horizonte
e faz estender o olhar
numa evasão libertadora.

Como para uma rive-gauche,
onde se suspendessem
e por momentos se esquecessem
todos os problemas
do dia-a-dia.

É Agosto ainda.

Junto às margens do rio
o lusco-fusco faz-se tarde
e cai lentamente,
quase em silêncio.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O Whiskey.

Dos campos verdes da Irlanda,
numa destilação suave,
eis uma bebida de génio!

Duas pedras de gelo, sempre.
Gosto dos copos frescos,
de whiskey novo...

Um livro de Samuel Beckett,
Nouvelles et Textes Pour Rien
et Têtes-Mortes.

E uma garrafa deste precioso líquido,
aurífero
e nobre.

Janelas abertas para a noite de Verão
e o blow-up do Mundo
num só trago.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Cais.

Da minha infância
guardo com saudade
a imagem de cargueiros
atracados ao cais.

E, uma vez, o pobre do filipino,
debruçado na amurada,
que fumava um cigarro solitário,
numa profunda quietude
e solidão.

Eu próprio me virei para trás,
para olhar o que ele via
e reparei numas luzinhas apenas
e na noite, sempre vazia.

Ah, as luzes que a baía reflectia...
E as cores!
A água reflectindo as cores!...

Sinto hoje ter alma de marinheiro,
sempre em lado nenhum,
ancorado em qualquer cais
num navio, que de noite,
faz a sua manutenção.

Julguei mesmo um dia
ir para a Marinha...

Que camarote confortável eu teria,
com uma estante de onde nenhum livro
cairia...

E fumaria Pall Mall,
leria Lowry
e... Camões!

Não me interessa mais
nada disso.

Levanto-me
e vou à janela fumar.

É noite cerrada...

As férias.

Estende-se a noite, lisa
e lenta,
como são todas as noites
de Verão.

Nos jardins das casas
sobre o mar,
as luzes acesas,
prolongam-se as conversas
amenas
de mais um serão
em paz.

As crianças correm agitadas
na noite escura, entre risos
e galhofas nervosas.

O resto do ano não é assim.

Vive-se o stress e a solidão.

Que pena a classe média
portuguesa
só viver, realmente,
no Verão...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Cartaz.

Cary Grant entre cornucópias
amarelas, tem nos braços
um pedaço de cartaz rasgado.

domingo, 15 de agosto de 2010

Agosto 3.

Bebo uma cerveja bem gelada,
como quem dá um mergulho no mar.
O sal,
o sal é o mesmo
e a espuma,
a espuma é a mesma também.

Até há música e tudo,
que na praia detesto,
mas enfim,
o Foreigner do Cat Stevens,
dos meus tempos de adolescente.

Estiquei as persianas
para quebrar o Sol,
tanto Sol, também não,
a pele crustácea seca demasiado
e a sombra,
afinal a sombra também queima,
também bronzeia.

Outra cerveja, vá lá,
é só mais uma corridinha à água.

E, já agora, mais umas pedras de gelo
nas gambas cozidas,
para depois do banho.

sábado, 14 de agosto de 2010

Despedida.

Custou-me tanto que partisses...

O meu coração agora
é um século dezanove
feito de carroças
e lamaçais.

Crianças descalças e andrajosas
que vêm à porta dos casebres
ver o comboio passar.

O pobre do Antunes, coitado,
que enriqueceu na padaria
e fica com flatulência
ao almoço.

Tu partiste
e os cantores pimba
encantam as sopeiras
de cima do palco.

Há lágrimas nos olhos
das adolescentes afegãs.

Sonhos que a brisa devolve
à beira-mar.

Ficou a casa vazia,
as janelas abertas,
as portas por fechar.

E há um cão
que não pára de ganir.

Um elefante que entrou
sozinho na floresta densa.

E a água jorra intensa
como labaredas de dor.

E depois há o vazio...

Ah, o vazio...

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Desencontro.

Estás sentada na esplanada
e não vês,
a água vem subindo a areia
húmida,
e estende-se,
húmida também,
na escuridão
da noite.

Borbulha a tónica no teu copo
e não vês,
a areia que brilha
na noite
escura.

Vozes...

Zut!

São palavras
impossíveis,
as dessas vozes
caladas...

Sonhos frustrados,
desejos que a boa moral
reprimiu.

E tu,
bebericando a água
com limão,
nâo vês...

O mar rebenta
em espuma húmida
na noite escura...

Tu não vês...

Zut!

Pop.

Não era teu o psiché,
a caixinha da bailarina,
o pó-de-arroz.

Não eram tuas
as plumas,
os cisnes
não eram teus,
as essências,
o espelho.

A pop-ácida
retro.

Não era teu o voo
Concorde,
o spleen,
Paris.

Não era teu
nada disto.

Só esse azul
cobalto.

E o silêncio.

Campo de Flores, de João de Deus.

DEDICAÇÃO
A António Nobre

Porque é tão alegre a carta
Que acabas de me escrever?
Tens tu já a alma farta
De suspirar e gemer?...

É que quando nos devora
Uma entranhável paixão,
Soffra a gente muito embora,
Mas a prenda amada não!

Eu sei, sei que tu me escondes
As tuas lágrimas, sei;
E é assim que correspondes
Ao conceito que formei:

Que não há anjos dotados
De uma indole melhor;
E que esses olhos rasgados
Encobrem-me só a dor!

Viu um dia um viajante,
Escriptor de toda a fé,
Em Africa uma elephante
Vir mais um filhinho ao pé;

Os indigenas começam
A atirar-lhes; porém,
Quantas settas arremessam
Todas se cravam na mãe;

Porque mettendo-se a pobre
Entre o filho e o gentio,
De tal maneira o encobre,
Que elle nenhuma o feriu;

E ella andando mansamente
Lambendo-o, para mostrar
Que não vê, não ouve ou sente
Cousa alguma de espantar,

O consegue pôr a salvo,
Com toda a satisfação
De ter sido só o alvo
Dos tiros da multidão!

Ha no mundo acaso indício
De dedicação maior,
Prova, extremo, sacrificio
De mais verdadeiro amor?...

Tu és como a elephante
D´esta anecdota exemplar...
( Se bem que a mais rara amante
Não passa da mãe vulgar! )

Ir exhalar um gemido,
Reprimil-o dentro em nós,
Por que o não oiça um ouvido
A quem magôa essa voz:

Dizer, n´uma dor immensa,
Tem-te! á lagrima que está
De uma palpebra suspensa
A desprender-se-nos já,

É de um amor verdadeiro,
É de um infinito amor!
E por isso te amo e quero
Infinitamente, flor!

João de Deus, Campo de Flores, Livraria Bertrand, 9ª edição, s/ data, pp.180, 181 e 182.

Incêndios em Portugal 2.

" Ah, fiquei triste por abandonar a minha casa.
Fiquei lá com tudo... "

António Nobre...

" Dada a aproximação da Primavera, quase sempre agreste à beira-mar, é necessário que o doente saia da Foz. Animado com a perspectiva de dar realização aos seus planos literários, parte para o Seixo nos primeiros dias de Março.
"" Chegado ao Seixo, a despeito da fadiga da viagem, sentiu-se bem impressionado "" - continua a comovida narração de Augusto Nobre - "" tanto mais que sabia que lhe não faltariam, como sempre, as visitas do Dr. Aníbal Lourenço, seu primo, médico em Cete, amigo dedicadíssimo e espírito sempre interessado em assuntos literários. Mas a doença progredia, como sempre, e era já impossível levar a cabo o acalentado plano duma redacção definitiva dos versos a publicar. A fadiga era enorme, a febre subia impiedosamente, e a falta de apetite auxiliava a horrível tarefa do seu enfraquecimento.""
Pouco depois - em 16 de Março, dois dias antes do fim - o derradeiro apelo. Um pedido angustiante de socorro, as últimas linhas traçadas pela sua mão: "" Continuo mal e não posso mais estar aqui. Os ares são fortes de mais. Morro se continuo. ""
Não continuou... mas era entretanto chegado o momento - aquele desde sempre escrito no livro do destino -em que acabaria de vez toda a canseira de uma vida predestinada para a dor. Mas dor - e ele sabia-o - que gera a glória e a imortalidade.
Um destino idêntico ao do Luís...
Aquele último grito da carta do poeta, mais apelo da morte que sinal de vida, é logo ouvido por Augusto Nobre que de Lisboa, onde se encontrava, corre directamente ao Seixo para no dia seguinte acompanhar o irmão nos seus últimos passos na terra.
Chegam à Foz ( "" Que lindo que isto é! "" ), quando a tarde começa a declinar.
Na manhã seguinte - era o dia 18 de Março de 1900 - o poeta apenas espera, para se extinguir na paz e na resignação, aqueles braços fraternos que o hão-de amparar no último alento.
"" Sentando-me junto da cama, disse-me, passados momentos que se sentia muito mal e que ia morrer. E sem que lhe notasse qualquer sintoma de agonia, ele, que estava sentado na cama recostado em almofadas, inclinou-se para mim, abraçou-me e assim ficou. ""

Guilherme de Castilho, António Nobre: a obra e o homem, Arcádia, 2ª edição, Setembro de 1977, pp.97 e 98.

Incêndios em Portugal.

" Estamos à conta de Deus. "

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Infância.

No passado em que eu fui menino
( qual outro me interessaria mais? )
tão feliz eu era!

O Mundo,
o Mundo então
não existia ainda.

Aquele que eu via,
era uma coisa de velhos serôdios,
de pessoas sem graça,
mortas de tédio,
de medos
e ilusões desfeitas.

De luzes
quase apagadas.

Era eu menino
e o futuro tão menino
como eu.

Hoje trago esse menino passado
em mim.

E o futuro,
o futuro ficou por ali,
é apenas sonho
e saudade.

sábado, 7 de agosto de 2010

Mar Português.

Paisagem de cardos,
de cactos e muros baixos,
brancos de cal.

Paisagem sonhada de Capri,
a Capri de Pousão.

Ao fundo,
a linha azul do horizonte
e a capelinha de Nobre,
" Ó Boa Nova, ermida à beira-mar,
Única flor, nessa vivalma de areias! "...

As vagas tempestuosas
rubi-celestes,
da tragédia
dos náufragos
e dos aflitos...

Este mar que vejo e ouço,
na penumbra escura da taberna
do ócio, dos bravos lobos,
junto ao mercado e ao cais,
é verdadeiramente
o mar português,
e banha Mazagão, Salvador,
Mombaça e Nagasaki.

E são castelos
os seus sonhos de espuma.

Alucinados,
os seus cavaleiros, de alísios
e monções,
junto às barras
e nas restingas.

Fortes,
a vau.

VÊ SE VÊS TERRAS DE ESPANHA, de Alberto de Serpa. 1906.

Deixo
A minha solidão
- A solidão povoada em que me fecho -
E vou a Espanha, como tantos vão.

Mas não mercadejar nas ruas de Madrid
Nem por elas flamar, como o bom português:
Vou à dura Castela que apenas entrevi
Nos livros de Unamuno, nas telas de Alvarez.

Ela, de lá de longe, tanto acena
Com futuros poemas verdadeiros,
Que levo uma saudade bem pequena
De praias, ondas, velas, nevoeiros.

E terei praias nas campinas rasas,
Ondas, nas serras quase a Deus erguidas,
Velas, nas asas das cegonhas, longas asas,
Nevoeiros, nas faces contraídas...

Que ansiedade comigo vai, tamanha!
De lá, darei meu lírico sinal.
Vou ver se vejo, pois, terras de Espanha.
- Adeus, areias de Portugal.

Op. Cit., p.166.

Ilusão, de Fernando Caldeira. 1841-1894.

Vêm as ondas uma a uma
Plantar um floco de espuma
Na areia da beira-mar
E ali andam entretidas
Nas delícias repetidas
De a trazer e de a levar.

Mas se passa uma rajada,
Lá vai a espuma levada...
E cada onda, que vai,
Quando a não acha, parece
Que de triste desfalece
E reflui soltando um ai!

Pois mar é a paixão que eu trago
E, se uma esperança afago
No lidar dessa paixão,
Não tarda vento que a leve,
Porque a pomba cor de neve
Era espuma, era ilusão.

In, Cabral do Nascimento, colectânea de versos portugueses,Editorial Minerva, 1ª edição, 1964, pp.95 e 96.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Agosto 2.

O cinquentão, de pele tisnada
pelo Sol das dunas,
passeia-se calmamente
com a Branca de Neve
nos corredores
do centro comercial,
à noite.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A Praia, Hoje.

A espuma fresca
seca a boca
num murmúrio inaudível.

Os corpos, em paz,
expostos ao Sol
com a sua textura granulada
de veludo.

As cores do arco-íris.

Ou só o verde-acastanhado
do mar.

A ilusão de não estarem
nunca sós,
envolve de tristeza
toda a praia.

E quando o vento parar de soprar
e a água na baixa-mar
se espreguiçar na areia húmida

o silêncio confundir-se-á
com as vozes roucas
e cegas
dos versos de Camões...

" O céu, a terra, o vento sossegado...
As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...
O pescador Aónio, que, deitado
Onde co´o vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não pode ser mais que nomeado:
- Ondas - dizia - antes que Amor me mate,
Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
Me fizestes à morte estar sujeita.
Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita. "

Soneto de Camões, 104., Lírica, IIIºVolume das Obras Completas, Círculo de Leitores, 4ª Edição, 1981, p.202.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Auto-Retrato.

Não posso esquecer-me de mim, nunca.
Sou aquilo que escrevo e aquilo que sou.

Sou menos, no que escrevo.
Já vivi quase tudo.

Pouco me importa agora.
Nada esqueci,
mas também de nada
me lembro já.

E depois,
porque não exaltar apenas
uma tarde assim,
tão serena
e ver a tarde cair
no bico dos pardais?

Mais um pouco
e são horas de sair
para jantar...

domingo, 1 de agosto de 2010

Agosto.

Este Verão, não sei,
não apetece.
O calor sufoca.

Há incêndios por todo o lado,
de Portugal à Rússia,
da Rússia à Califórnia.

Cheias,
não rima com China,
mas parece.

Os sicários matam
em Ciudad Juárez.

E em Paris,
há cargas policiais
contra mulheres indefesas
e crianças.

Este Verão,
não.

As cartas de Napoleão
para a arquiduquesa de Áustria,
sua segunda mulher,
entediam-me.

" Alice já não mora aqui ",
também.

Um mergulho no mar,
às nove da manhã,
talvez.

Mas a viagem...

A distância...

Este Verão,
realmente...

sábado, 17 de julho de 2010

Por Um Fio 2.

" Nós, poetas, só escrevemos disparates. "
Manuel de Freitas.

O Tempo que eu perdi...
Resíduos de secura,
a alucinação da Morte.

Mas não posso voltar atrás,
mesmo sabendo que é no passado
que a Vida está.

Uma gaveta tua por abrir,
as molduras que murcharam
como as pétalas
num jarro esquecido...

Todo este Mundo que ainda é teu
a encher-se de pó.

Algures, numa floresta densa,
ouvem-se os gritos dum veado
que agoniza.

Só esse sacrifício
me redime da dor.

Depois,
cai o silêncio
e a escuridão da noite.

Exausto e imóvel,
deixo de pensar.

Mas não consigo dormir.


Manuel de Freitas, Jukebox 1 & 2, Teatro de Vila Real, Vila Real, Outubro de 2009, p.37.

domingo, 11 de julho de 2010

Por Um Fio.

Eu troquei a vida
por ti
e olha que não é
nada pouco,
a vanguarda toda
e as mesas coloridas
de fórmica,
em que o açúcar
fervilha,
por ti

e pela maior
das doenças,
a mais bela,
a mais sóbria
e bela,

troquei a vida
pela verdadeira solidão,
que é amar-te,
tão só.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Didi Balú Dininho.

Noite cerrada, a porta também,
os dedos queimados dos cigarros de vintém,
as salas fechadas, as luzes apagadas,
o mar desfazendo a espuma nos areais.

Oh, meu gatinho lindo, meu Didi Balú Dininho, amigo,
de volta de mim todo o tempo, sem nada compreender,
vamos agora dormir, o quarto está fresco, fresco e escuro
e lá longe, nem sabes onde, só o mar bate devagarinho.

Vem de mansinho, meu gatinho amigo,
vem dormir, não tenhas medo,
é o mar lá longe, de encontro ao molhe,
e é o mesmo mar a desfazer-se, cego,
nos areais.

sábado, 26 de junho de 2010

Diário. ( Fevereiro de 1985. )

O SOL.

É o verdadeiro Deus do Universo
e terá imaginado o Homem.

NUVENS.

Imensas, flutuando
em seu belíssimo azul.
Sopros de água fria
pairando sobre a Terra
nevada.

MÚSICA.

O sono dos pássaros?

TER.

Porque não acalmava nunca
o furacão do espírito,
sem ousar maldizer esse chão
da Terra a seus pés.

QUERER.

Sabia que as palavras apagavam
a estrita observância do corpo.

FAZER.

Mas as palavras lavavam
o corpo, profusamente.

PODER.

Poder é a palavra transformada
em corpo.

SER.

É tudo.

Diário. ( Boletim da Biblioteca da Escola Preparatória de Benedita, nº2, Fev/Maio, 1985.

OS PLANETAS INTERIORES...

Mercúrio.

Sabe bem viver.
Torna-se fácil ao tacto,
torna-se redondo e largo
e é verde como as folhas
das plantas à superfície.
É bom respirar.
É alegre e fresco,
é branco e faz vento.

Mas agora perscruta-se
a lenta rotação,
faíscas de pedras acesas
em Mercúrio
e o Sol anda perto.

Vénus.

A Primavera azul e verde sobe do pincel
de Boticelli, são insectos e são abelhas
e as flores fragilíssimas.
As mulheres não são
como o lotus.

Terra.

Conquista o fogo e a guerra
do Verão, um dia, Prometeu!
O mar é salgado, sob
as nuvens
desmedidas.

Marte.

Marte é grande e mais
frio do que a cidade de Moscovo.
Marte, nas sombras,
cobiça os mares da Terra,
acossado de meteoritos...

... E UM EXTERIOR.

Júpiter.

Para lá de Marte há o vazio
e há Júpiter.
Entre ambos vogam as pedras arrancadas
ao fogo e agora extintas,
agora que Júpiter fecha os olhos
e em névoas espessas se reconcilia.
Explodem lentamente nuvens
e chuvas torrenciais, dum fogo de
trovoada metálica, e todo o planeta
é de um fluido.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

http://www.youtube.com/results?search_query=l%60albatros+leo+ferre&aq=f

O Albatroz. ( Charles Baudelaire )

Por mera brincadeira, os homens de equipagem
Caçam enormes aves do mar, albatrozes
Que, indolentes, costumam seguir a viagem
Do navio percorrendo abismos tenebrosos.

Assim que sobre aquelas tábuas são largados
Os reis do céu azul, envergonhados, trôpegos,
Deixam cair, humildes, as imensas asas,
Que arrastam pelo chão, como remos já soltos.

Como está mole e frouxo o alado peregrino!
Ele, que tão belo foi, ei-lo cómico e feio!
Um espicaça-lhe o bico, usando o seu cachimbo,
E um outro, coxeando, imita o pobre enfermo!

O poeta é igual ao príncipe das nuvens
Que se ri do arqueiro e afronta a tempestade;
Exilado na terra e no meio de apupos,
As asas de gigante impendem-no de andar.

Baudelaire, As Flores do Mal, Tradução de Fernando Pinto do Amaral, Assírio e Alvim, Lisboa, 1992, p.55.

Leo Ferre, Les Poetes: Volume 2, 7. L`Albatros, 1967, Barclay.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Silêncio 2.

Lá longe,
na clareira
iluminada
a querosene.

Em calções
e lenço de suor
ao pescoço,

vives a tua vida
ainda,
envolto na cor
da savana.

Depois,
dormes ao relento
da alma nua.

Os teus olhos,
sacudindo as moscas.

Poemas Inconjuntos. ( Alberto Caeiro ).

É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar só ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?

Poemas de Alberto Caeiro, Edições Ática, 4ª Edição, Lisboa, Setembro de 1970, pp. 88 e 89.

domingo, 20 de junho de 2010

História de um muro branco e de uma neve preta. ( José Saramago )

" ( ... )
Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: " Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cor, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira. " Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam. Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando " bom ", " mau ", " suficiente ", como se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
" Porquê? ", pergunta a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: " Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu. " Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: " À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito de uma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu? "
Muitos anos depois de estas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: " E eles ainda estão tristes? ". Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso. "

Goria in Excelsis, Histórias Portuguesas de Natal, Antologia, Vasco Graça Moura, José Saramago, História de um muro branco e de uma neve preta, Colecção Mil Folhas, Público, 2003, pp. 286 e 287. ( Transcrição feita apenas da segunda parte da história, a da neve preta. )

sábado, 19 de junho de 2010

José Saramago.

A trama foi sendo tecida a negro
e as vírgulas,
as vírgulas desenhando cúpulas magníficas,
vidros nas portadas dos cafés em princípio de século,
grutas,
jangadas fantásticas,
elefantes,
barcarolas.

Um nome mágico e austero
e outro, nome doce de mulher...

Por caminhos que as ervas,
daninhas, cobrem,
estás tu hoje,
soprando a brisa,
agitando as copas.

E não é que desse sopro leve,
se vão soltando letras,
vírgulas,
maiúsculas,
parágrafos,
numa mancha negra de bordado?...

E é aí que tu estarás
para sempre,
encruzilhando as linhas
e a fazer-nos pensar.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Os Pardais.

A tarde desce no bico dos pardais,
que escolhem estes plátanos
para refúgio instável na escuridão
que aí vem.

As suas pálpebras,
membrana subconsciente
da leveza da vida,
vão engolir a abóbada
barroca,
absurda,
doutro dia que acabou.

Pudesse eu adormecer assim,
tão leve e sem sonhar...

Descobrir-se-ia em mim,
escondido pela folhagem,
a mesma inocência,
a mesma pulsação,
tão subtil.

domingo, 13 de junho de 2010

POÉTICA ( II ). Vinicius de Moraes.

COM as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitectura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo.
( Um templo sem Deus. )

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
- Entrai, irmãos meus!

Vinicius de Moraes, O Poeta Apresenta O Poeta, Antologia seleccionada e prefaciada por Alexandre O `Neill, Cadernos de Poesia, Publicações Dom Quixote, 2ª Edição, Julho de 1969, p.155.

( Dedicado à minha primeira leitora, Dra. Marisa Queiroz, que teve a simpatia de me dar alguma da sua atenção. Com que prazer recebo alguém que me lê de tão longe... )

sábado, 12 de junho de 2010

Delírio Amoroso.

- Espera um pouco!
Os convidados vão chegar...

As velas só serão acesas
quando todos estiverem no átrio,
prestes a entrar...

- Tudo pronto na cozinha?
Quero o foie-gras fresco
e o Alvarinho a 6ºC.

As bolachinhas salgadas?
E as tostas de pão de alho?

Deixem ficar só a toalha à mesa,
essa linda toalha de linho,
debruada a tricot pela minha avó!

Os pratos e os talheres ficam no aparador.
Depois,
virão preparar a mesa.

- Tu...
Espera um pouco ainda!...

Este ramo de orquídeas
é para ti!...

Deixa-o nesse lindo jarro verde,
no closet.

Os convidados estão a chegar.

Tourada.

Oh, sabe bem
ser o canastrão,
quando apetece.

Ridículo ao cravar
as últimas farpas
nas costas do animal
moribundo.

E todo galo depois,
a pedir o aplauso
do público,
gritando em falsete,
" Olé! "

Fado.

Cantei só uma vez e doeu,
pois marcou-me para sempre.

Trago no coração
dois botões de rosa
que não florescem.

Apenas incham
e sangram
a fatalidade
do meu destino.

Manada Selvagem.

A força de tantos cavalos
supera a sua agilidade
e ultrapassa mesmo
toda a sua graciosidade.

São alavancas,
os seus quadris.

E esgares doridos,
o seu resfolegar.

Avançam cegos na pradaria
e têm a força de touros
quando começam
a escouçear.

domingo, 30 de maio de 2010

Noite de Maio.

Tombam as noites frescas
pelas esplanadas,
e só se vislumbra, à volta,
o interior apagado
dos apartamentos
e as janelas esquecidas,
abertas de par em par.

As crianças correm
às escuras
e as mesas estão cheias
de travessas de caracóis
e ruidosos copos de cerveja.

Eu como um prego picante,
em silêncio.

E revivo a nostalgia
dos Verões de África,
que me aperta,
ainda hoje,
o meu coração solitário.

De resto, não gosto
deste desleixo,
destes corpos sujos
em chinelos de plástico.

Mas é assim a cidade,
nas esplanadas, à noite.

E a mim, apetece-me sair.

A noite dentro de casa
abafa e oprime.

O EX-POETA. ( Malcolm Lowry )

A madeira flutua na água. As árvores
Curvam-se, lá é verde, a sombra.
Uma criança caminha no prado,
Há uma serração, vista da janela.
Conheci outrora um poeta que concluiu:
O amor não se foi, apenas as palavras do amor,
Disse ele. Foram-se as palavras
Com as quais teria pintado aquele barco.
O vermelho de chumbo nunca se impõe
Nos lívidos poentes do Cabo.
Disse-lhe que sim, que tinha toda a razão.
Ele sorriu e disse: um dia destes
Deixarei este lugar como as palavras me deixaram a mim.


Malcolm Lowry, As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar, selecção e tradução José Agostinho Baptista, Assírio e Alvim, Lisboa, 2005, p.81.

sábado, 29 de maio de 2010

Eternidade.

Outro cigarro,
a mesma esfinge.

A noite não desce,
a manhã não sobe.

Rodopiam os morcegos
de volta do candeeiro.

E passa sorrateiro
um gato negro,
debaixo dos automóveis.

Uma aragem fresca
vem varrer a rua
de beatas
e papéis velhos.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Noite Calma.

Estende-se a noite pelas ruas
cada vez mais desertas,
cada vez mais tardias.

A cidade recolheu-se
há muito
para dormir.

Vou à janela e demoro-me
com um cigarro.

Deixo-me estar depois,
na companhia de mim só.

Até me diluir
completamente
na escuridão
da madrugada.

Para a L.

Amanhã já irei rever
os teus olhos lindíssimos,

a tua beleza tão natural
e a tua simpatia, sempre
muito feminina.

E será como
se não estivesses estado
nunca ausente.

Hugh Macdiarmid. ( 1892-1978 ) Escócia.

A Pequena Rosa Branca

A Rosa do mundo não é para mim.
Para mim quero apenas a pequena rosa branca da Escócia
De cheiro agreste e doce - e que destroça o coração.
(p.1326)

( Trad. Sara Soares de Oliveira )

Rosa Do Mundo, op. cit.

Rosa Do Mundo.

Chile, Araucanos.

Canção

Bela como a prata era a minha amada.
Por sua grande beleza,
sofro agora.
Porque terá nascido o sol
Onde noutros dias morre?
E porque baixou o sol
onde noutros dias sobe?
Assim mudou teu coração,
minha amada.
(p.201)

( versão: Herberto Helder )

México, Nahuas

Eu não sei se estiveste ausente
Eu deito-me contigo, e levanto-me contigo.
Nos meus sonhos tu estás junto a mim.
Se estremecem os brincos das minhas orelhas
eu sei que és tu que te moves no meu coração.
(p.210)

( trad. José Agostinho Baptista )

Timor, Anónimo

A lua já nasceu.
O céu iluminou-se.
Eu aqui sozinho.
Tu, onde estás?

Não te esqueças, não,
De nós nesse dia.
De nós dois sozinhos
na boca do mar...
(p.518)

( Trad. Ruy Cinatti )

Rosa Do Mundo, 2001 Poemas Para O Futuro, 3ª Ed., Assírio e Alvim, Lisboa, Agosto de 2001.

domingo, 16 de maio de 2010

Silêncio, Noite Escura, Solidão.

O vulto imóvel
sentado há horas
e o fumo lento
dum cigarro esquecido.

Houve um dia...
Uma manhã azul,
como são as manhãs
de Verão,
as cores vivas
e o alegre piar
das gaivotas...

O rolo da espuma
na quebra-mar...

O aroma adocicado
dos protectores solares...

As crianças que brincam
na areia húmida?

Há quanto tempo foi?
E porquê, lembrar isso agora?

Houve outra dia,
era de noite...
A viagem,
os faróis acesos
dos automóveis,
o espaço invisível
à volta...

Uma televisão ligada,
algures no prédio.
Ou será um transistor?

O gato que dorme,
enroscado no sofá,
em silêncio.

Há quanto tempo já,
as correrias saudáveis
na Praia do Guincho?

E para quê
lembrar isso agora?

Domingo de Manhã.

Sopra o vento fino e agita
as folhas dos plátanos
numa dança leve
e o sol brilha e aquece a rua
desde manhã cedo.

No entanto,
inquieta-me o voo desequilibrado
dos pombos
e a sua incompreensível
errância.

Será que estão com fome?

Deslumbramento.

Só por palavras
poderei designar
a imensidão
do céu azul,
sobre as nuvens densas.

O mistério
da dupla articulação.

E o corpo duma voz
erecta,
sensual,
que exprime
a razão
e os dias.

As folhas expelidas
pelo vento
que o Tempo secou.

E a selectividade áspera
dum herbário antigo
feito de palavras
que não morrem nunca.

O deslumbramento
da última palavra?

Talvez sim,
talvez.

Confissão.

Sob um céu límpido
como a água pura
e um olhar de fogo
faiscando o Universo,

eu cheguei
ao limiar
de mim mesmo

e dei-me
ao vento,

à ondulação forte

e ao bailado
da Vida.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

O Sonho.

Não sei explicar
as palavras com as mãos.
Não consigo,
só com as mãos.

Nem sei se deixei
de acreditar
em alguma outra coisa.

As palavras são muito mais
amplas e lisas
que qualquer crença
ou norma.

As palavras pertencem-me,
são minhas só.

Poema-Diário.

Sou vulnerável
ao cansaço,
fico abatido
por um desfalecimento interior,
fico prostrado.

Cruzo pela milionésima vez
a perna,
ou descruzo ambas,
alternadamente.

Ninguém o julgaria
uma coisa mental.

Sinto-me desfeito
por tantas penas
e penitências.
Estou cansado.

Aventura.

A pele tisnada
sem meias
nuns mocassins
já batidos.

E o azul do céu,
num mesmo relance
do mesmo olhar.

Coup d`oeil
et le soleil
en plenitude.

Os colares de coral.
Os lagos bordados
de miosótis
e flor de lótus.

Idílio.

A madeira de teca
dos cadeirões na esplanada.
Canteiros de papiros e bambus
decorados de seixos brancos.

Apenas o som da água
que pinga
e o seu reflexo na palha
do telheiro.

Um bonzo percute um gongue
e agita as campainhas de bronze.

Desenham-se as copas de palmeiras
no horizonte
e a manhã sobe,
leve
como um pássaro.

domingo, 25 de abril de 2010

Domingo à Tarde.

O movimento hipnótico
das ruas coloridas
por um Sol vivo
e alegre.

Aos pés da estátua
do Marquês,
mia um gato
por uma infelicidade
desconhecida.

Ninguém viu,
de repente,
o céu a curvar-se
em linhas órficas
ao fundo.

Mas também
ninguém viu o gato.

Islândia.

A ardósia no céu
da Islândia
e o cheiro a enxofre,
talvez.

Uma fita vermelha
no horizonte.

Lembras-te do céu azul
e dos cúmulos cerrados,
tão alvos como as asas
de um anjo?

Leva um cavalo
pela arreata,
enquanto farfalha
o horizonte.

Vês a fita vermelha do Sol,
nesse toucado de chumbo?

A lava basáltica
acolchoando o céu.

Adormece o coração
da Islândia,
para que a Europa
respire de novo.

E os cedros exalem
a sua resina doce,
lá onde vivem
os gamos.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Povinho 3.

Roda, roda
o carrossel,
deixai a roda
rodar!

É que enquanto
assim gira,
não nos sai mais cara
a nossa vida.

Povinho 2.

Que bom!
Que bom!

Fazem com gosto
o que fazem
os reis,
quando dão novos herdeiros
à nação.

São até melhores,
porque ao mesmo tempo,
fazem gelatina também.

Povinho.

Dão-se bem neste húmus
as urtigas e os cardos.

Vicejam daninhas
as ervas pelos prados.

Crescem activos e saudáveis
os rafeiros nas quintas.

Mas coitados
desses pobres de espírito,
que são felizes
a preço de saldo
e se passeiam enleados,
com ares todos aristocráticos!

Elogio Do Príncipe Da Dinamarca, de Mário Cesariny.

Coitado do Hamlet!
Assassinado,
Empurrado,
Para o sepulcro que é!

Oculto entre reposteiros,
Sem paixões,
Como os ladrões
Que lucram trinta dinheiros.

Coitado do que ele vê:
Crimes,
Espectros,
Correctos.

Coitado do Hamlet!

Mário Cesariny, burlescas, teóricas e sentimentais, Colecção forma, Editorial Presença, 1972, p.56.

Sand In My Eye.

Fica o granulado do sal
quando a água evapora,
a terra revolta
depois da colheita,
gretas abertas na rocha
pela passagem do vento.

Resíduos de madeira
e asas de mosca,
junto aos orifícios
onde as aranhas
habitam.

( " como todos os trabalhos de construção, que só deixam atrás de si algumas pedras e lixo. " ) (1)

Carcaças expostas
nas bancas de açougueiro,
como em Rembrandt.

Vísceras,
sangue.

Também se engole em seco,
quando se mudam as páginas
da vida
e os olhos se fecham ao esplendor
da luz.

É na penumbra
que o Tempo
parece flutuar.

(1) Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, in Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas, 3ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pp. 259, 260.

domingo, 11 de abril de 2010

Primavera.

Voltam as gaivotas
a sobrevoar a praia.

E os patos atravessam
os campos, em busca
de sapais.

Anima-se a vegetação
polvilhada de insectos.

Os dias estendem-se mais
e o Sol brilha e aquece.

Parece que a bonança
sobrevem à tempestade.

Saio de casa
para comprar jornais
no quiosque próximo.

Cruza-se comigo uma anciã
no seu passo incerto e lento.

E os adolescentes regressam
da escola, de mochila às costas
e a mastigar pastilhas.

António Nobre, por Duarte de Viveiros.

Anto: sai dessa cova! ( É Primavera... )
Abre teus olhos grandes, poeta amigo,
E vem compor estrofes de oiro antigo
Na torre do Silêncio e da Quimera!

Por ti, saudosa, a Lusitânia espera!
Depressa, acorda! Deixa o teu jazigo...
Embrulha-te na capa e vem comigo,
Que o luar de azul está pintando a esfera!

Meu pálido e moderno português:
Não venhas triste como da outra vez
Em que eras tímida criança ainda!

Mas, traze os versos que fizeste à neve,
Aí nessa terra maternal e leve...
Bardo: levanta-te! ( Que noite linda! )


Obra Poética de Duarte de Viveiros, Lisboa MCMLX, Edição do Instituto Cultural de Ponta Delgada, p.79.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Desgosto.

A poesia acabou.

Fecharam-se-me as palavras num nó.
Deprimiram-se-me as emoções
até ao vazio.

Um papel que se amarrota,
para ficar uma bola inútil
na mão fechada.

Vai nascer outro dia
e eu não sei
como descrevê-lo.

O que for belo,
então,
não tem lugar aqui,
neste desgosto
de tudo.

Vidas Que Passam.

Hoje sei
que os dias se sucedem,
os minutos se escoam
e eu aqui,
sem nada fazer.

Deixo a luz acesa
pela noite fora.

Hoje sei
que enquanto durmo,
levantam os aviões
na Portela, em Barajas
ou Orly.

A vida flui.

A minha,
é outra vida que passa.

Ficou a luz acesa
e não a vou apagar.

sábado, 27 de março de 2010

Balada da Despedida.

Sonhos que foram só meus,
amanhã viverei.

Cidade que foi só minha,
a todos compreendi
e a todos aceitei.

Amei cada minuto
da minha vida
e vi os meus dias
multiplicados por mil.

Hoje não brinco
com futilidades colegiais.

Perdidas no tempo,
não passam de pirosas,
são apenas banais.

Promessas só minhas,
de nenhuma descansarei.

Hoje não quero
amizades ocasionais.

Amanhã vou partir
para encher a vida
de futuro
e viver também
com tudo o que passei.

Amizades assim
eu não quero mais.

São só passado,
são só pirosas,
são só banais.

Amanhã começarei
a viver o futuro.

E o quê mais?

" Lá Longe, Ao Cair da Tarde, Vejo Nuvens D`oiro... "

Choro as lágrimas
de Coimbra
e misturo as lágrimas
com saliva.

Tenho mil lembranças
guardadas no coração,
que chora nas cordas
duma guitarra.

E misturo
essas lágrimas quentes
com saliva.

Choro a guitarra
na madrugada alta ao luar
e misturo, a soluçar,
essas lágrimas doidas
com saliva
e muco.

" Fosse o meu destino o teu, oh mar alto, sem ter fundo... " ( Zeca Afonso )

Moldei com nobreza
o meu carácter.

Sempre precisei.

Para observar as estrelas
no céu, à noite.

Ou sentir a brisa fresca
nas falésias, sobre o mar.

Coisas simples.

Para a poesia,
também.

Respirar o aroma vivo
dos jardins, na Primavera.

E saber-me viver.

domingo, 21 de março de 2010

A Árvore.

Uma só árvore
de Francis Ponge
faz o dia
parecer
mais leve.

Uma só árvore
verde,
no castanho
dos campos.

Faz o dia
mais cheio.

Mais pleno.

Significante.

Poesia.

As palavras
assim dispostas
fazem poesia.

As palavras ouvidas
algures.

As palavras
que traduzem
o âmago
das pessoas.

Tu, só tu...,
é meio verso
em Camões.

Pedacinhos de ossos...,
de Pessanha.

A Liberdade Livre,
de Ramos Rosa.

As palavras que se ouvem
na cacofonia
das vozes.

O seu sentido
lúcido.

Só.
O Livro.
Desassossego.

sábado, 13 de março de 2010

As Tulipas.

As tulipas
em jarros
de vidro,
ao Sol.

As vermelhas
vão bem
num jarro azul.

As tulipas amarelas,
no jarro verde.

E as brancas,
dispostas no preto.

Agora, sem se saber como,
estão as tulipas tombadas
no meio do chão.

Sábado.

Abriu o Sol
hoje de manhã.

O gato correu
a espreguiçar-se.

Tomo um café,
negro,
fumegante.

Fumo o primeiro
cigarro,
o cigarro
do café.

Quase não há
movimento
lá fora.

Apenas os velhinhos,
de sacos de plástico
na mão, se encaminham
para o mercado.

Tudo o mais parece estar
muito longe,
um ponto distante
na cornocópia
do Tempo.

É Sábado de manhã
e a luz do Sol
parece envolta em silêncio.

quinta-feira, 4 de março de 2010

" Até ao Fim do Mundo. " ( Para ti. )

Até ao fim do Mundo.
E tu, inocente,
de nada sabes.

A força de um temporal,
hoje.
A eternidade,
depois.

A plenitude anónima
de tantas pessoas,
de tantas gentes.

Desde sempre
e por todo o lado.

Casos de vida
tão idênticos,
por vezes.

" Até ao fim do Mundo ",
meu amor verdadeiro,
prolonga o mistério
num mistério
maior.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Madeira 3.

" Fomos vendo passar casas inteiras, carros e frigoríficos. "

O céu muito escuro.
A chuva metia medo.
As ribeiras transbordaram.

Debaixo de lama, rochas
e troncos de árvore.

Estava ali há horas.
Tinham removido dos escombros
o corpo.

A derrocada.
Casas, pinheiros, carros.
Lama.

Tudo se desmoronou.
Destroços.
Pedregulhos enormes.
Pedaços de talha dourada.

O carro azul-escuro
entalado num quintal,
no meio das casas.

Correu para casa
aos gritos.
Foi procurar a mãe.

O cadáver de uma criança.

O barulho da ribeira e do vento
era ensurdecedor.

De madrugada conversaram
à luz das velas.
" Vi uma coisa escura
atrás de mim. "

Angústia.
Pânico.

O outro rumor.
Aflição. Choro.


( Elaborado a partir da reportagem " Morte e Sobrevivência ", revista Sábado, nº304- 25 de Fevereiro a 3 de Março de 2010. )

Madeira 2.

" Vou morrer,
não aguento tanta tristeza. "

Madeira 1.

" Estou triste
como a noite ",
a voz flautada
de dor.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Eu Adoro-te, Tôchim.

O anjo negro
iluminado à noite
por archotes, que vão seguros
pela mão de mascarados
de águias negras
luxuosíssimas...

A locomotiva
que parte da estação central
numa nuvem de fumo
e ao som do compasso metálico
de bielas
e cambotas
oleosas...

E a carruagem
puxada por uma quadriga
ajaezada de veludos
carmins
e roxos,
debruados a ouro.

Eu daria tudo
por te revelar
o meu maior segredo,
sobrevoando a razar
a preia-mar do litoral
português,
de óculos escuros,
auscultadores
e um boné azul
ultramarino.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

14 de Fevereiro. ( Para ti. )

O deserto
sombreia o teu corpo
pelas dunas.

Tombam maçãs
na relva dos pomares.

E as gaivotas
voam para as arribas,
antes que o temporal
se abata sobre o mar.

Uma linha de luz
desponta no horizonte,
ao nascer do dia.

A esta hora,
a imaginação renasce
em mim,
como uma revoada de anjos,
subindo aos céus.

E um bimotor atravessa,
em velocidade constante,
a extensa solidão
do deserto.

Casimiro de Brito.

13 de Fevereiro
Sento-me, e o mar senta-se comigo, nesta esplanada de falso inverno. É bom conversar com quem nos entende, um velho amigo, diante de uma mesa vazia. Quase vazia- uma garrafa de vinho ( ou é alma? ) também é gente. Os papéis, que sempre me acompanham, nem os tirei da algibeira. Este tampo desamparado basta. Basta para dizer um coração sem descanso, sem descanso partindo-se, a perfeição dos barcos silenciosos, o sabor de uma língua que muito amo, o medo das máscaras e das lápides. Alfaias e afazeres ficaram por momentos esquecidos onde há pouco andei a correr de um lado para o outro. O mar parece compreender: sem velhice nem lágrimas ensina-me o pouco que espero dos dias e das noites, alguma serenidade.

( ... )


Casimiro de Brito, Na Barca do Coração, Campo das Letras, 1ª Edição, Porto, Novembro de 2001, pág.48.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Sofia Coppola.

Estive a ouvir
Beach House e Fever Ray
no computador,
agora os CD já são passado
e os Vinil, um verdadeiro luxo.

Tenho um blogue só de poesia,
tão simples como ter apenas
palavras escritas
no computador,
que ninguém lê.

Oh, quem não esteve
na Avenida de Roma,
na segunda metade
dos anos 70,
pegue, por favor,
no computador.

Ouça Get Well Soon,
ou Girls
e veja os filmes de Sofia Copolla.

Isso.
Veja todos os filmes
de Sofia Copolla.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O Melhor Futebolista do Mundo.

Bonito, bonito...
é o jovem velocista africano,
pronto para correr
na pista de 100 metros.

É o índio na pradaria,
a cavalo do seu Mustang
malhado.

Bonito é o ganadeiro ribatejano,
que se passeia por bares à noite,
vestido de canastrão sóbrio
e não sabe ainda que o é.

É o turco de Istambul
ao cair da tarde,
que encanta as turistas
com os seus olhos verdes.

O esquimó pobre
vestido de peles de urso branco,
que come com auto suficiência
a carne crua das focas.

Bonito, realmente,
é o mecânico de subúrbio,
que cultiva os biceps
sob a t-shirt de feira.

O pescador humilde,
que tem olhos da cor do mar.

O turista acidental,
que se passeia com uma Beth
Ditto qualquer
e é feliz.

O marido da sostra,
que não era quando se casou.

O inevitável boémio,
o eterno solitário,
sem qualquer interesse
nem nenhuma posição.

Talvez também esse futebolista,
que trabalha dentro das chuteiras
e pensa dentro do relvado.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Para a Tôchim.

Amo as tempestades nocturnas
e o ribombar dos trovões.

( Nesse mar pouco chão,
de pouco me serviria
a carta de patrão... )

Amo as falésias,
o sal que se estilhaça
quando rebenta o mar.

Amo o sobrevoo
de helicópteros
sobre a pradaria.

A força das manadas
contra os curros.

O trote elegante
das éguas
na manhã serena.

O formigueiro sibilante
ao Sol de África.

Amo o silêncio
das nuvens altas,
estas nuvens negras
de chumbo.

E o som do chuveiro
de encontro
ao reposteiro.

Sair do banho
para a solidão
da casa.

Acender o candeeiro
da cozinha
e inundar-me
da luz de lama,
do sonho de argila,
a terracota fina
da tua memória
em mim.

Amo a mudez
do telemóvel,
outro dia ainda.

O chá de tília
antes de adormecer.

E a ti,
na brancura pura
doutro amanhecer,
eu amo-te ainda mais,
só a ti.

domingo, 31 de janeiro de 2010

No Tempo de Keats.

No tempo de Keats
não havia electricidade,
pois então.

Não havia automóvel,
nem avião.

Vivia-se em quintas
e as cidades eram sujas
e enlameadas.

No tempo de Keats
havia o Napoleão.

Oh, como era
o tempo de Keats
e o que não havia
nesse tempo?!...

No tempo de Keats
as folhas caíam
no Outono.

Os patos migravam,
pois então.

As palavras eram doces,
ou não.

A noite iluminava-se
a carvão.

No tempo de Keats
não havia desodorizantes
para a transpiração.

O Vento.

O vento corta frio
as esquinas
e rasga-me a pele
como uma lâmina.

Arrasta em turbilhão
as folhas mortas
do esquecimento
de tudo.

Tenho os olhos molhados
da água e do vento,
mas não posso agora
virar as costas
ao tempo.

Este vento cega.

Este vento satura o espaço
e uiva louco
e sem destino.

No fundo granuloso
do jardim,
o vento parece mesmo
que faz fumo.

Desânimo.

Inércia.
Paragem de ritmo.
Dilatação do Tempo.

Ausência
e vazio.
Vontade insatisfeita.

O Outro foi sempre
mais feliz.

Desde a infância.

Insensibilidade
e indiferença.

Que fazer?

Ostentação.

O tweed cinzento de lã
e as jantes imaculadas de prata
do automóvel novo rico.

Não é assim que tu queres.

Um céu azul clarinho de Inverno,
os parafusos de aço na grelha desbocada
do estúpido automóvel
e as calças vincadas pela empregada.

Não é assim que tu queres.

O pullover antracite
e o sorriso claro,
Sensodine,
amável, simpático.

Tu queres de outro modo.

Tu queres tudo,
sem ti.

Porque tu não estás
em ti.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

E o Mercedes.

E o Mercedes
põe o anel de ouro
no mindinho.

O Mercedes
é boa gente,
tem amigas
às migalhas.

O Mercedes
quando troca de fato
volta-se para as colegas
e vai
e diz,
" Vai uma volta,
nos corredores do Vasco?... "

Só de pensar nisso
o Mercedes acorda
e põe o ouro
no mindinho.

O Bruxo.

O bruxo veste-se
de noite
e sobrevoa sozinho
a Baixa da Banheira.

O bruxo
é um pau
de cabeleira.

O bruxo aproveita
o silêncio
para ser
O Bruxo!...

O bruxo
tem os olhos
doces
como as águas
do Tejo.

O bruxo
rodeia-se de vassouras
para carpir
monossílabos.

E à porta dos cafés,
o bruxo balbucia
" Eu... "
enquanto faz
de galheteiro.

O bruxo
não passa,
pobre coitado,
de um
azeiteiro.

O bruxo
aproveita o silêncio
para fazer
de pau de cabeleira.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Haiti 7.

Secam-se-me
os lábios
desta água
que eu bebo.

Haiti 6.

O sangue tinge
o cinzento sujo
dos escombros.

Haiti 5.

Os olhos
envoltos
no algodão
da poeira.

Os olhos
orbitados
no cimento
dos rostos.

As mãos,
palmitos
sem préstimo.

As mãos
abertas.

Os dedos
apontam
para dentro
das mãos.

Dos olhos.

Haiti 4.

As lágrimas
sulcam rostos
secos
até
aos dentes.

Haiti 3.

Corpos devastados
pelo horror.

E as crianças...

As crianças
suspensas
da inocência.

Haiti 2.

Escombros retor-
cidos.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Haiti.

As palmeiras estão de pé
no jardim presidencial
em Port-au-Prince...

Inverno.

A chuva e o frio,
o vento e a neve
dobram-me ao dia-a-dia,
sujeitam-me à nostalgia,
ao cansaço
e à rotina.

Tudo está cinzento
e molhado.
E as mãos,
o cabelo,
gelados.

Ah, o sabor quente
do chocolate
e o seu aroma fino...

Lisboa volta ao que era,
nos anos cinquenta
e sessenta.

Sobretudos monótonos
e o ar pingado
das pobres pessoas
pelas praças
e nas avenidas.

Chego a casa e ouço música.
Ponho os óculos e escrevo
textos realistas...

O Tempo assim
parece que pára.

Caos.

São longínquos os oásis
de transparência pura,
cada vez mais
longínquos.

E os bolbos de orquídeas,
submersos em água
dentro de copos de vidro,
germinam tão devagar.

As tartarugas avançam
aleatoriamente
no oceano profundo
e os polvos dão à costa,
mortos de doença
desconhecida.

O mar destrói as praias
e as barracas dos pescadores.

E os oásis perdem-se
no granulado denso
dos desertos.

A ondulação crepuscular
da luz em fogo
acelera as partículas
do esquecimento.

As orquídeas
germinam devagar.

E os oásis?

Onde estarão agora
os oásis
e a pura transparência
da sua memória?

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

2010.

A meia-noite chegou
e tu dançaste com elegância
e um sorriso bonito
nos lábios.

A flute de champanhe
na mão e a algazarra
à volta,
o sino,
o comboio,
os incómodos sprays.

Lá fora o rio ondulava forte
e a água chegava quase
ao passeio da marina.

Não passou nenhum transatlântico
para um novo cruzeiro.
Apenas o fogo-de-artifício
de Cacilhas a Belém
iluminou a noite.

Tem um Ano feliz,
meu amor.
Assim,
também eu
o terei.