sexta-feira, 30 de abril de 2010

O Sonho.

Não sei explicar
as palavras com as mãos.
Não consigo,
só com as mãos.

Nem sei se deixei
de acreditar
em alguma outra coisa.

As palavras são muito mais
amplas e lisas
que qualquer crença
ou norma.

As palavras pertencem-me,
são minhas só.

Poema-Diário.

Sou vulnerável
ao cansaço,
fico abatido
por um desfalecimento interior,
fico prostrado.

Cruzo pela milionésima vez
a perna,
ou descruzo ambas,
alternadamente.

Ninguém o julgaria
uma coisa mental.

Sinto-me desfeito
por tantas penas
e penitências.
Estou cansado.

Aventura.

A pele tisnada
sem meias
nuns mocassins
já batidos.

E o azul do céu,
num mesmo relance
do mesmo olhar.

Coup d`oeil
et le soleil
en plenitude.

Os colares de coral.
Os lagos bordados
de miosótis
e flor de lótus.

Idílio.

A madeira de teca
dos cadeirões na esplanada.
Canteiros de papiros e bambus
decorados de seixos brancos.

Apenas o som da água
que pinga
e o seu reflexo na palha
do telheiro.

Um bonzo percute um gongue
e agita as campainhas de bronze.

Desenham-se as copas de palmeiras
no horizonte
e a manhã sobe,
leve
como um pássaro.

domingo, 25 de abril de 2010

Domingo à Tarde.

O movimento hipnótico
das ruas coloridas
por um Sol vivo
e alegre.

Aos pés da estátua
do Marquês,
mia um gato
por uma infelicidade
desconhecida.

Ninguém viu,
de repente,
o céu a curvar-se
em linhas órficas
ao fundo.

Mas também
ninguém viu o gato.

Islândia.

A ardósia no céu
da Islândia
e o cheiro a enxofre,
talvez.

Uma fita vermelha
no horizonte.

Lembras-te do céu azul
e dos cúmulos cerrados,
tão alvos como as asas
de um anjo?

Leva um cavalo
pela arreata,
enquanto farfalha
o horizonte.

Vês a fita vermelha do Sol,
nesse toucado de chumbo?

A lava basáltica
acolchoando o céu.

Adormece o coração
da Islândia,
para que a Europa
respire de novo.

E os cedros exalem
a sua resina doce,
lá onde vivem
os gamos.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Povinho 3.

Roda, roda
o carrossel,
deixai a roda
rodar!

É que enquanto
assim gira,
não nos sai mais cara
a nossa vida.

Povinho 2.

Que bom!
Que bom!

Fazem com gosto
o que fazem
os reis,
quando dão novos herdeiros
à nação.

São até melhores,
porque ao mesmo tempo,
fazem gelatina também.

Povinho.

Dão-se bem neste húmus
as urtigas e os cardos.

Vicejam daninhas
as ervas pelos prados.

Crescem activos e saudáveis
os rafeiros nas quintas.

Mas coitados
desses pobres de espírito,
que são felizes
a preço de saldo
e se passeiam enleados,
com ares todos aristocráticos!

Elogio Do Príncipe Da Dinamarca, de Mário Cesariny.

Coitado do Hamlet!
Assassinado,
Empurrado,
Para o sepulcro que é!

Oculto entre reposteiros,
Sem paixões,
Como os ladrões
Que lucram trinta dinheiros.

Coitado do que ele vê:
Crimes,
Espectros,
Correctos.

Coitado do Hamlet!

Mário Cesariny, burlescas, teóricas e sentimentais, Colecção forma, Editorial Presença, 1972, p.56.

Sand In My Eye.

Fica o granulado do sal
quando a água evapora,
a terra revolta
depois da colheita,
gretas abertas na rocha
pela passagem do vento.

Resíduos de madeira
e asas de mosca,
junto aos orifícios
onde as aranhas
habitam.

( " como todos os trabalhos de construção, que só deixam atrás de si algumas pedras e lixo. " ) (1)

Carcaças expostas
nas bancas de açougueiro,
como em Rembrandt.

Vísceras,
sangue.

Também se engole em seco,
quando se mudam as páginas
da vida
e os olhos se fecham ao esplendor
da luz.

É na penumbra
que o Tempo
parece flutuar.

(1) Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, in Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas, 3ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pp. 259, 260.

domingo, 11 de abril de 2010

Primavera.

Voltam as gaivotas
a sobrevoar a praia.

E os patos atravessam
os campos, em busca
de sapais.

Anima-se a vegetação
polvilhada de insectos.

Os dias estendem-se mais
e o Sol brilha e aquece.

Parece que a bonança
sobrevem à tempestade.

Saio de casa
para comprar jornais
no quiosque próximo.

Cruza-se comigo uma anciã
no seu passo incerto e lento.

E os adolescentes regressam
da escola, de mochila às costas
e a mastigar pastilhas.

António Nobre, por Duarte de Viveiros.

Anto: sai dessa cova! ( É Primavera... )
Abre teus olhos grandes, poeta amigo,
E vem compor estrofes de oiro antigo
Na torre do Silêncio e da Quimera!

Por ti, saudosa, a Lusitânia espera!
Depressa, acorda! Deixa o teu jazigo...
Embrulha-te na capa e vem comigo,
Que o luar de azul está pintando a esfera!

Meu pálido e moderno português:
Não venhas triste como da outra vez
Em que eras tímida criança ainda!

Mas, traze os versos que fizeste à neve,
Aí nessa terra maternal e leve...
Bardo: levanta-te! ( Que noite linda! )


Obra Poética de Duarte de Viveiros, Lisboa MCMLX, Edição do Instituto Cultural de Ponta Delgada, p.79.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Desgosto.

A poesia acabou.

Fecharam-se-me as palavras num nó.
Deprimiram-se-me as emoções
até ao vazio.

Um papel que se amarrota,
para ficar uma bola inútil
na mão fechada.

Vai nascer outro dia
e eu não sei
como descrevê-lo.

O que for belo,
então,
não tem lugar aqui,
neste desgosto
de tudo.

Vidas Que Passam.

Hoje sei
que os dias se sucedem,
os minutos se escoam
e eu aqui,
sem nada fazer.

Deixo a luz acesa
pela noite fora.

Hoje sei
que enquanto durmo,
levantam os aviões
na Portela, em Barajas
ou Orly.

A vida flui.

A minha,
é outra vida que passa.

Ficou a luz acesa
e não a vou apagar.