terça-feira, 30 de novembro de 2010

Fernando, 30 de Novembro de 1935.

Se tu tivesses,
Fernando,
ouvido a canção dos Abba,
talvez te risses agora,
como eu me rio.

Estou tão cansado.

Tenho a cabeça
naturalmente cheia,
como sempre a tiveste também.

Cansado de mim mesmo,
pois então.

Cansado da Rhetorica
do Padre Figueiredo,
como tu também.

" Tenho hoje arrastado pela rua os pés e o grande cansaço ", ( 1 )
Fernando.

Deixa-me ao menos ouvir Fernando,
deixas?


( 1 ) Fernando Pessoa,  Livro do Desassossego por Bernardo Soares, Ática, 1982, Lisboa, p. 169.

sábado, 20 de novembro de 2010

A Feira. ( Para Arthur Rimbaud ).

As crianças correm para galgar
a pista dos carrinhos eléctricos.

Luzes estonteantes e um ruído infernal
abafam a voz rouca e fina,
que as convida para uma nova viagem.

Surgem depois as mulheres, suas mães,
espartilhadas, redondas, deslavadas,
nos vestidos vistosos de feira.

Vêm calmas e seguras,
agarradas ao pauzinho da maçã
cristalizada e do algodão doce.

Uma traz tatuada no ombro direito
uma sereia nua, de olhos azuis
e grandes pestanas,
grandes e grosseiras.

As crianças, agora,
deliram, tontas
e afogueadas.

Rodam tão depressa
que nem se vêem.

O Avião. ( Para Raymond Roussel ).

O bimotor surge da falésia,
quase não se vê porque o Sol
o esconde num espelho de luz.

Se não fosse pela pirueta que o faz
rasar a água e o mostra rangendo
de nova força ascensional,

dir-se-ia que na estrada próxima
passava um carro vagaroso,
anunciando por um megafone estridente
a estreia do circo, nessa noite, na vila.

Relatório de bens, de José Tolentino Mendonça.

Esta é a oferta:
prata e cobre, e linho fino,
e peles de carneiro tingidas de vermelho,
e peles de texugo,
um cordão de trinta côvados
e madeira preciosa

Na dobra escondida do mar
uma campainha
de ouro


( José Tolentino Mendonça, O Viajante Sem Sono, Assírio & Alvim, Setembro de 2009, p.44. )

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O Anjo, de Robert Walser.

Um anjo como este o melhor que tem a fazer é ficar à espera de que alguém lhe diga que precisa dele. Muitas vezes, leva mais tempo do que ele pensa; ele tem mesmo de ser mais comedido, não deve julgar-se insubstituível. Pela minha parte, não gostaria de estar no lugar daquele de quem fiz um anjo. Fiz dele um deus, para que ele nunca mais viesse ao meu encontro em parte alguma, para que fosse imóvel como uma imagem e eu pudesse dirigir o meu olhar para ele conforme precisasse ou desejasse. Quase me faz pena que ele tenha julgado que eu sou curioso e que vou andar a correr atrás dele, agora que eu quase o trago metido no bolso ou que o tenho agarrado a mim como se ele fosse uma fita amarrada em redor da minha testa. Já não sou eu quem vai ter com ele, é o valor dele que me envolve, é o fulgor da sua luz que me rodeia. Quem soube dar soube também tomar para si. Tanto uma coisa como outra têm de ser praticadas. Ele nasceu da compaixão, mas pode bem acontecer que eu, o implorante, brinque com ele. Ele duvida, inquieta-se. Eu umas vezes creio, outras descreio, e ele tem de levar isso com paciência, esse querido.


Robert Walser, A Rosa, Relógio D´Água Editores, Janeiro de 2004, p.49.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Segredo 2.

Sagrados são os meus sonhos,
porque são só meus.

Sagrados,
os cumes,
os grandes abismos.

A luz é sagrada,
a luz que nos ilumina.

A luz que aquece,
que vivifica.

Sagrada a infância,
oh, a infância...

A família?
Sim, talvez seja, sim.

As palavras, pois.
Que outra forma tenho
de me ligar ao Mundo?

O meu filho
e é um desabafo meu.

Depois,
o que se vende e troca,
o desbarato das emoções
e dos sentimentos,
o corpo,
o que se perde,
nada disso tem significado.

Nada disso importa.

Podes expor,
deixa que eu o faça também,
não serve de nada,
não presta.

domingo, 14 de novembro de 2010

Plenty, Plenty Soul.

Preciso ver da janela da sala
as folhas dos plátanos que espelham
a luz do Sol.

Esta quietude sem palavras
na manhã de Domingo.

O gato estirado num rectângulo
luminoso, no chão.

A rua deserta.

A floresta de enganos
esquecida algures.

Pode não ser ainda
o grande dia
do meu reencontro.

Mas sinto a paz
envolver-me
e tomar-me o espírito.

Vivo o que sei
como um iniciado vive
o grande conhecimento
universal.

A forma clássica
do pensamento.

Vivo sem subterfúgios,
a intelorância do gratuito.

E deixo-me estar
a bebericar o café.

Milt Jackson:
Plenty, Plenty Soul.

sábado, 13 de novembro de 2010

Os Tristes.

Tristes são os campónios, coitados,
quando não sabem onde estão.

São tristes os faróis,
na solidão das barras,
que iluminam a noite
com a sua luz circular.

A pequena burguesia de Raul Brandão,
passeando pelas latadas e entre os milheirais.

As árvores destinadas a ser tristes,
como os resistentes ciprestes.

Os adolescentes convencidos
da sua importância,
que morrem de tédio quando ficam sós.

As pessoas que ganham o céu
se lhes falou uma mulher bonita,
uma mulher conhecida.

( Eu próprio, quando via
a Laura Alves no café... )

Tristes são as famílias insípidas
que vivem com uma filha já adulta,
para quem ninguém olha.

Os cães,
tristes por viver.

A chuva que cai
pela noite fora.

A doença,
que torna as pessoas tristes,
mesmo que não pareçam.

O tédio de tudo.

A arrogância solitária
que há nos passos apressados
de quem cruza a rua
de madrugada.

Anjo da Guarda, de Nuno Júdice.

O anjo que desce do espírito com a tarde,
que queima o chão da página, que
mancha de orvalho os campos do inverno,
onde a erva insiste em manter-se,
tem o olhar cansado do infinito. Pego-lhe
na mão, ouvindo o arrastar de asas
por trás de mim, enquanto avançamos
pelo alcatrão. É certo que um anjo não
foi feito para andar; e que os seus passos
desenham um voo desajeitado na hesitação
bêbada de um rumo. Mas sento-o na
cadeira da taberna; ponho à sua frente
o amargo cálice da aguardente matinal; e
vejo-o engolir até ao fundo as gotas de
fogo do inferno, saboreando o sol que
desponta, por um instante, de entre as
nuvens que o expulsaram.

( Nuno Júdice, Pedro , Lembrando Inês, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Fevereiro de 2009, p.13. )

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Turcifal 2.

Fui só ao Turcifal almoçar,
pão, pão, pão!

Fui só almoçar,
pão, pão!

Aladydotcom,
yeahhh....

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

L.P. ( Para Ti )

Às vezes, tu apareces no meio das tintas,
o teu sorriso inimitável, no meio dos frascos,
das telas e de um aroma forte a aguarrás.

A água das manchas e a teberentina forte
dos padrões de cor.

E sempre o teu sorriso que
bebe os teus olhos,
tão únicos.

Às vezes, repara,
és tu outra vez,
como no retrato de grupo,
a menina discreta,
a menina do fundo.

E o teu sorriso,
sempre tão puro,
sempre tão teu.

Vais ler agora?

domingo, 7 de novembro de 2010

Sakineh Ashtiani.

Mas que mania,
Sakineh Ashtiani,
não há deus nenhum,
em lado nenhum.

Há só uns homens de barbas,
alguns, uns dez-reis-de-gente,
que impõem dogmas e lendas,
para não sabermos pensar.

Isso de haver deus,
é só passado,
Ashtiani.

O que vemos pelo Mundo,
ou não,
é apenas fome,
miséria
e dor.

E gente satisfeita,
porque não?...

Se o for realmente...

Tudo o mais
é essa terra árida
donde só saem pedras.

E a vida mesquinha
que te obrigaram a viver.

Voa, Ashtiani, voa
como voam as aves,
deixa o teu pensamento
ser um céu.

A terra onde vives
parece só ter pedras
e homens cinzentos.

Há tanta gente
que, como tu,
não é feliz...

Agora, o deus...

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Novembro.

Depois dos dias de furiosa tempestade,
de um cinzento descuidado e sujo
pelas ruas alagadas,
os olhos cerrados ao fumo da água,
sem luz, nem vivalma,
 
Novembro surge nas fumarolas
das castanhas assadas
e do vinho doce.

Umas senhoras bem ataviadas
compram o primeiro bolo-rei
na pastelaria do bairro.

Trazem as notas enroladas
em pequenos porta-moedas
como o de verniz preto,
da mais idosa, quase trôpega já.