domingo, 31 de janeiro de 2010

No Tempo de Keats.

No tempo de Keats
não havia electricidade,
pois então.

Não havia automóvel,
nem avião.

Vivia-se em quintas
e as cidades eram sujas
e enlameadas.

No tempo de Keats
havia o Napoleão.

Oh, como era
o tempo de Keats
e o que não havia
nesse tempo?!...

No tempo de Keats
as folhas caíam
no Outono.

Os patos migravam,
pois então.

As palavras eram doces,
ou não.

A noite iluminava-se
a carvão.

No tempo de Keats
não havia desodorizantes
para a transpiração.

O Vento.

O vento corta frio
as esquinas
e rasga-me a pele
como uma lâmina.

Arrasta em turbilhão
as folhas mortas
do esquecimento
de tudo.

Tenho os olhos molhados
da água e do vento,
mas não posso agora
virar as costas
ao tempo.

Este vento cega.

Este vento satura o espaço
e uiva louco
e sem destino.

No fundo granuloso
do jardim,
o vento parece mesmo
que faz fumo.

Desânimo.

Inércia.
Paragem de ritmo.
Dilatação do Tempo.

Ausência
e vazio.
Vontade insatisfeita.

O Outro foi sempre
mais feliz.

Desde a infância.

Insensibilidade
e indiferença.

Que fazer?

Ostentação.

O tweed cinzento de lã
e as jantes imaculadas de prata
do automóvel novo rico.

Não é assim que tu queres.

Um céu azul clarinho de Inverno,
os parafusos de aço na grelha desbocada
do estúpido automóvel
e as calças vincadas pela empregada.

Não é assim que tu queres.

O pullover antracite
e o sorriso claro,
Sensodine,
amável, simpático.

Tu queres de outro modo.

Tu queres tudo,
sem ti.

Porque tu não estás
em ti.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

E o Mercedes.

E o Mercedes
põe o anel de ouro
no mindinho.

O Mercedes
é boa gente,
tem amigas
às migalhas.

O Mercedes
quando troca de fato
volta-se para as colegas
e vai
e diz,
" Vai uma volta,
nos corredores do Vasco?... "

Só de pensar nisso
o Mercedes acorda
e põe o ouro
no mindinho.

O Bruxo.

O bruxo veste-se
de noite
e sobrevoa sozinho
a Baixa da Banheira.

O bruxo
é um pau
de cabeleira.

O bruxo aproveita
o silêncio
para ser
O Bruxo!...

O bruxo
tem os olhos
doces
como as águas
do Tejo.

O bruxo
rodeia-se de vassouras
para carpir
monossílabos.

E à porta dos cafés,
o bruxo balbucia
" Eu... "
enquanto faz
de galheteiro.

O bruxo
não passa,
pobre coitado,
de um
azeiteiro.

O bruxo
aproveita o silêncio
para fazer
de pau de cabeleira.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Haiti 7.

Secam-se-me
os lábios
desta água
que eu bebo.

Haiti 6.

O sangue tinge
o cinzento sujo
dos escombros.

Haiti 5.

Os olhos
envoltos
no algodão
da poeira.

Os olhos
orbitados
no cimento
dos rostos.

As mãos,
palmitos
sem préstimo.

As mãos
abertas.

Os dedos
apontam
para dentro
das mãos.

Dos olhos.

Haiti 4.

As lágrimas
sulcam rostos
secos
até
aos dentes.

Haiti 3.

Corpos devastados
pelo horror.

E as crianças...

As crianças
suspensas
da inocência.

Haiti 2.

Escombros retor-
cidos.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Haiti.

As palmeiras estão de pé
no jardim presidencial
em Port-au-Prince...

Inverno.

A chuva e o frio,
o vento e a neve
dobram-me ao dia-a-dia,
sujeitam-me à nostalgia,
ao cansaço
e à rotina.

Tudo está cinzento
e molhado.
E as mãos,
o cabelo,
gelados.

Ah, o sabor quente
do chocolate
e o seu aroma fino...

Lisboa volta ao que era,
nos anos cinquenta
e sessenta.

Sobretudos monótonos
e o ar pingado
das pobres pessoas
pelas praças
e nas avenidas.

Chego a casa e ouço música.
Ponho os óculos e escrevo
textos realistas...

O Tempo assim
parece que pára.

Caos.

São longínquos os oásis
de transparência pura,
cada vez mais
longínquos.

E os bolbos de orquídeas,
submersos em água
dentro de copos de vidro,
germinam tão devagar.

As tartarugas avançam
aleatoriamente
no oceano profundo
e os polvos dão à costa,
mortos de doença
desconhecida.

O mar destrói as praias
e as barracas dos pescadores.

E os oásis perdem-se
no granulado denso
dos desertos.

A ondulação crepuscular
da luz em fogo
acelera as partículas
do esquecimento.

As orquídeas
germinam devagar.

E os oásis?

Onde estarão agora
os oásis
e a pura transparência
da sua memória?

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

2010.

A meia-noite chegou
e tu dançaste com elegância
e um sorriso bonito
nos lábios.

A flute de champanhe
na mão e a algazarra
à volta,
o sino,
o comboio,
os incómodos sprays.

Lá fora o rio ondulava forte
e a água chegava quase
ao passeio da marina.

Não passou nenhum transatlântico
para um novo cruzeiro.
Apenas o fogo-de-artifício
de Cacilhas a Belém
iluminou a noite.

Tem um Ano feliz,
meu amor.
Assim,
também eu
o terei.