sábado, 30 de junho de 2012

sexta-feira, 29 de junho de 2012

O Famoso Caderno. Mia Couto.

A Demora

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto, in " idades cidades divindades"


in Citador.

O Famoso Caderno. Sabedoria de Velho Bode.

Folhas caídas para sempre
e uma lucidez tremenda,
são prenúncio de tempestade
e do tresmalhar das abelhas.

Não se trata assim uma senhora.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

O Famoso Caderno. Ana Luísa Amaral.

SEQUÊNCIA EM NOTA MAIOR QUALQUER

II

Hoje podia vir o que viesse:
e que fosse poesia
ou a noite selvagem na
garganta,
podia vir o que viesse
até cidades súbitas
no céu
um teatro qualquer a desfazer-se
e estrelas, o que fosse
era bem-vindo hoje

Ana Luísa Amaral, Minha Senhora de Quê, Quetzal Editores, Lisboa, Maio de 1999, pp.89 e 90.

Chicks on Speed We don't play Guitars

O Famoso Caderno. José Augusto Seabra.

Marítimos

*

Uma toalha de mar
para enxugar-te
o olhar.

*

José Augusto Seabra, id, ibidem, p.35

O Famoso Caderno. José Augusto Seabra.

Políptico da alma

" Na alma uma só ferida
faz na vida mil sinais "
( Camões )

II

Recomeçar apenas,
emergir-me
à superfície calma.
Silenciar
este esforço de dentro:
debruçar-me
para fora da alma.

José Augusto Seabra, Os sinais e a Origem, Portugália Editora, Outubro de 1967, p.55.

O Famoso Caderno. Fátima Maldonado.

Decadência

Indecente a palavra
cerrou a emoção,
em muitas vidas
aprende-se tão pouco.
No fim são quatro pérolas
numa taça de vidro.

Fátima Maldonado, Cadeias de Transmissão, Frenesi, Dezembro 1998, p.212.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

terça-feira, 26 de junho de 2012

David Bowie - Fantastic Voyage

O Famoso Caderno. Oh, os grandes artistas

Oh, os grandes artistas
que não têm horizonte...

O ar condicionado
dos salões,
as toalhas de linho
branco,
o foie-gras
e os perfumes
de França,
tão frescos...

segunda-feira, 25 de junho de 2012

O Famoso Caderno. Santos Populares.

Na Malveira come-se sopa
com os olhos a arder
e o mercado há muito que fechou.

Quantas estradas vão dar
à Malveira saloia, quantas ?

Estão todas em segredo,
todas estão por nomear.

A areia no cabelo
e a pele queimada do Sol.

Come-se sopa à noite,
na Malveira deserta.

Os olhos vermelhos
da água do mar.

domingo, 24 de junho de 2012

O Famoso Caderno. Sem Comentários.

Os borrachos no ninho,
quando esperam o alimento

e os veados, balindo forte
na manhã de nevoeiro,

ou as baleias, com o seu silvo
que atravessa os oceanos.

Os pescadores, sozinhos
nos botes de pesca

e os comandantes, chamando
a torre de controle
dos aeroportos próximos.

Os cantores pop,
nas tardes de Verão.

E nas piscinas,
as crianças querendo
atenção
para o mergulho
atabalhoado.

Os lobos que uivam
para a lua cheia
e as gatas,
as gatas,
nas traseiras envelhecidas
dos prédios mais antigos.

A última voz,
nem eu sei,
o último apelo
e a tarde vazia
de qualquer outro
sentido.

O leitor do jornal,
sentado calmamente
na esplanada,
indiferente à rua,
nem sei se à notícia,
que não sei sequer
se lê.

O Famoso Caderno. Outra Vez O Silêncio.

Outra vez a nudez
do silêncio.

A última letra
inaudível,
no fio vazio
do telefone.

O arrepio
da solidão.

O amigo
de ninguém.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O Famoso Caderno. Universo.

Recolho os traços do teu rosto
na minha boca
e beijo o céu na tua pele
e no calor dos teus olhos.

Doce me reclino em ti,
como se um sopro de ar
te detivesse e trouxesse
de volta ao meu abraço.

Alisas, amor, o meu desejo
na textura fina e lisa
do teu corpo.

E eu amo-te assim,
renascendo
a cada momento
da ferida aberta
que em ti teço.

E na penumbra,
ofegante,
incansável,
em ti eu absorvo
a terra toda
e o mar revolto
e cego, de tão
escuro.

O Famoso Caderno. Dor.

Esses olhos não são os meus,
nem a mão que te envolve
o ombro, é a minha mão.

Eu tenho os olhos abertos
e fixos no tecto da sala.

E trago as minhas mãos
fechadas e inertes, sem vida.

Há muito tempo já
eu pareço adormecido
num vulcão aceso.

terça-feira, 12 de junho de 2012

O Famoso Caderno. Eugénio de Andrade.

Espera

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugénio de Andrade, Trinta Poemas, O Sal da Língua Precedido de Trinta poemas, APE, 2001, Bibliotex, p.8.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

domingo, 10 de junho de 2012

O Famoso Caderno. Saudade.

Ausente e longe
de ti.

Não vou esquecer-te
nunca.

Tão presente em mim,
como estiveste
um dia.

sábado, 9 de junho de 2012

O Famoso Caderno. Atracado ao Cais.

Não gosto do " pimba ",
nem nunca,
em circunstância alguma,
eu gostei.

Não gosto de corações vermelhos,
de fundidos,
de frases feitas,
não gosto,
nem vou gostar.

De falta de acentos, não gosto,
de erros de ortografia, muito menos,
de " grandes malucos ",
ei, ei,
o que aí vai...

É uma linguagem
que imita adolescentes,
que repete erros
que eu não gosto.

É um falso amor
que desponta,
o amor alfa,
o amor pateta
e eu detesto.

Não gosto de garbo,
nem da mentira,
não gosto de nada disso,
nem irei gostar.

Não gosto mesmo.

Detesto,
claramente.

Não quero saber se o amor começa
quando transborda,
nem se há amor,
ou irá haver.

Desespero com isso
e sempre foi assim.

Não irei gostar de nada disso,
não irei nunca,
nem de nada mais.

Não gosto,
não vou gostar,
nem nunca gostei.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O Famoso Caderno. Do pé para a mão.

Não escondas os olhos
na nudez dos braços.

Os gatos há muito sonharam
a tua fragilidade, no abandono
diário do seu sono quieto.

Não mintas sobre o sobressalto
dos teus dias tão iguais.

Há lobos que uivam
não se sabe onde.

Talvez os teus olhos
se abram para a sua sede.

E o teu corpo
te peça a água límpida
dos regatos.

Não deixes que os peixes
te suguem o desenho dos pés.

Nem isso vale a pena,
de tão banal.

Ou que mãos,
muito oportunas,
consumam a linha
cruzada do teu desejo.

Não adormeças
na solidão escondida.

Nem te protejas
em mais ninguém.

Há aves que esvoaçam
nos teus olhos cerrados.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O Famoso Caderno. Arrependimento.

Não sei porque ainda voam
as aves nesta manhã azul.

E se ouve o seu chilrear
na nudez da tarde.

Agitam-se ao vento
as folhas das árvores.

E eu cerro os olhos,
de desalento e abandono.

Como quem esconde
um coração negro
no peito ferido.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

O Famoso Caderno. Joaquim Pessoa.

XXIII

Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderia escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Os Olhos de Isa, in, Joaquim Pessoa, Amor Combate, Litexa, 1985, p.318.

sábado, 2 de junho de 2012