domingo, 25 de dezembro de 2011

Silêncio.

Desaba sobre mim
o Inferno,
como o tecto
de uma casa
em chamas.

Ou a sombra
fria
do cabedal.

Consoada.

O alho picado e a salsa
perfumaram o prato raso
da Consoada e a luz forte
acesa sobre a mesa,
afastou a solidão da noite
para um longe indeterminado.

Estrita observância da tradição.

Baladas e estrelas e
a imitação do azevinho,
voluntários e sem-abrigo
que se dão as mãos
e na rua já não passa nenhum carro
há muito tempo.

Recuso prescindir da cerimónia,
mas dispenso olhar a nave
da catedral e as palavras
do cardeal. Para quê?

Está tudo bem lá fora,
não passam carros na rua
e as famílias recolhem-se
à mesa de jantar.

As crianças têm os olhos irrequietos
presos às pinturas do papel de embrulho.

Ah, as crianças...

Que bem apurada está esta pasta
de esparregado. E o vinho do Douro
tão denso no copo. Depois, os doces
de ovos e açúcar e o café aromático,
a aguardente velha e o cigarro.

Vão acender o madeiro nas aldeias.
Ah, as aldeias...
E o rosto avermelhado
de quem lá vive...

A rua está em silêncio ainda
e faz um frio de dezembro
na noite de breu.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Viver.

São as lágrimas dos coreanos
que me destroçam agora,
os ferros calcinados das explosões
de Bagdad, os tiros furtivos
que matam em Damasco,
o genocídio arménio, o incêndio
da rua Bramcaamp.

Eu vejo que descem as gaivotas
no seu voo lento, desce o nevoeiro
sobre as praias, repetem-se os gestos
errados de quem conduz para morrer
ao fim-de-semana e cai em mim
a desilusão de tudo não ser
como os olhos inocentes deste gato
que me olha e comigo partilha
alimento, carinho e a própria vida.

Que me interessa que não os conheça !
Que tomem o avião para a Indochina !
Que não se cruzem nunca com a minha vida...

Tudo o que fui e sou me pede forças.
O que amo verdadeiramente, faz-me
continuar a viver. Um dia...

Talvez um dia, sim,
talvez...

As Teorias Selvagens. Pola Oloixarac.

" Tira-me o copo da mão e pousa-o numa prateleira. Afaga o bigode, como se desfrutasse de uma pausa antes de me comer. Puxa-me pela cintura. Tento manter uma certa distância, mas em vão: está tudo impregnado da sua monstruosa irradiação. Fecho os olhos, mas não consigo deter a investida dos seus traços de monstro a esgueirarem-se entre auréolas azuis. O vapor rançoso, a combinação do perfume e do suor, o bigode absoluto, eco dos olhos mal-intencionados, a refastelarem-.se sob a minha roupa, esse nariz picado por insetos triásicos, narinas como buracos de rochas. Basta. Nada deve deter-me. Fujo, desfaço-me dos seus braços, desabo no sofá.
Sentada, sem cruzar as pernas, o calor começa a rastejar-me pelos joelhos acima, moldando-me o corpo, puxa-me, puxa-me a boca - para a deixar escancarada, virada para ele. Devo estar completamente vermelha. Tapo o rosto com o cabelo.
( ... ) "

Pola Oloixarac, As Teorias Selvagens, Quetzal, série américas, Tradução de Margarida Amado Acosta, Lisboa, 2011, p. 115.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

De Noite.

A luz azul.

O reflexo ultramarino
na água do rio.

O carro desliza
sem parar.

Vou entrar em casa
às escuras.

E ligar a televisão
por mundanismo.

A luz repousante
acesa no quarto.

Os livros por abrir.

Vou dormir assim.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

E a água, a estrada e o cinzento amargo na garganta...

E o nevoeiro,
esse cantinho secreto
no roseiral
e a água fria do lago,
os patos e os cisnes
flutuando...

E os pinhais...

Era preciso sair da estrada,
os vales desenhavam
uma ondulação crispada
na memória.

Se eu parar, quero água,
vou beber água fria,
outra vez...

E o céu,
não se vê bem o céu,
vou ter que parar...

Onde vai ter esta
estrada cinzenta ?

Sinto a garganta
presa e a boca amarga...

A noite cai
e eu tenho que regressar.

Mas se ainda sinto
a garganta amarga...

Onde tenho a garrafa
de água ?...

Será bom
voltar?

Deslizo pela estrada fora,
já de noite, a rádio ligada...

A vida continua e a água,
onde tenho a garrafa de água ?...

terça-feira, 29 de novembro de 2011

As palavras dizem adeus, o sonho esquece o silêncio e é noite, depois.

Estas palavras dizem em silêncio
a mudez do azul,
o brilho que ofusca
a gabardina beje,
o cabelo extenso
e forte,
os ombros fracos e estreitos,
a linha dos lábios finos na tessitura
rugosa do vento,
que sopra seco
e esconde o tempo
e devolve o rosto,
de um abraço apertado,

os olhos irrequietos, quase cerrados
de prazer,
um prazer secreto,
ofegante,
depois extenuado,
disperso
no sono
cinzento do amor
milhares de vezes
saturado,
preso outras tantas vezes
num abraço repetido,
mas satisfeito.

As sandálias gregas, como novas,
feitas de pele e ornamentadas
de pedras lazuli e grená,
em fio de prata,
cobiçadas na escadaria arenosa
pelos mais abençoados,
absurdos
olhares,
abertos uma vez mais
pelo vento e dispersos,
adormecidos por um novo
e sonhado prazer,

enquanto te afastas,
nitidamente
irreconhecível.

A erosão não gasta esse sonho,
condenado, no entanto,
ao mais profundo,
secreto, adeus.

E é noite tão cedo,
o vento vai em rodopio, sem rumo,
e o sonho esconde
o dia muito azul,
que nasce depois
e tu adoras,
como se fosse
único.

sábado, 17 de setembro de 2011

A Mãe.

Tantos cuidados, desde que o dia nasceu.

O leite, o pão barrado com doce de mirtilos

e agora vamos à esplanada,
eu preciso
de um café forte, de sentir o vento
enquanto tens tempo
e não sais para
trabalhar,

compraste o jornal?

Não me deixes sem nada para ler,
meu filho.

Fico para aqui sozinha.

Mas eu deixo-lhe a televisão ligada,
minha mãe,
e o jornal.

Só tem que o folhear
e leia, leia o jornal,

mal possa, eu volto,

adeus,
minha mãe.

Não abra a porta, mesmo
se a campainha tocar.

Eu chego já,
não tarda.

domingo, 31 de julho de 2011

Na Praia da Luz, Foz do Douro.

A praia da Luz
é assim,
o desenho liso das paredes de vidro
das esplanadas,
música lounge quase em surdina
e em frente, as rochas enormes
que a água envolve e submerge,
como se fossem jangadas
de Gericault.

Ah, o sotaque leve,
mas incisivo,
dos adolescentes
e as senhoras discretas,
que folheiam revistas,
desinteressadamente.

O mar, tão bravio,
entre o barro
e a cinza.

Hoje pedi ao empregado,
muito solícito sempre,
um copo alto de limonada.

Rua de Serralves, Porto. ( Em 15 de Junho de 2003 )

Neste pátio das traseiras de minha casa
sinto o Sol quente e o vento fresco da tarde.

Os pardais vêm debicar insectos.

Aqui e ali, no chão, caíram há pouco
os borrões cor de cinza das gaivotas.

Lá fora na rua, já perto do largo
onde estão os cafés, há pessoas
que no seu amargo viver, misturam
vinho tinto e cerveja e passam o tempo
que não têm, a fazer maldades entre si.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Viagem Ao Oeste.

Trouxe estas pedras das dunas.

E a chapada de água,
quanto mais revolta no mar,
mais bela.

E fria.

Trouxe a água na boca,
na boca salgada.

Trouxe as dunas
nestas pedras
minúsculas.

E o mar,
trouxe o mar
nos lábios.

Quando atravessei
a marginal,
suspensa nas arribas altas,
entrevi a cinza do Sol
e trouxe as arribas
e a cinza também.

Cheguei a casa
e já era noite,
noite densa e fresca.

E trouxe a noite
para dentro de casa
uma vez mais.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Desânimo 2.

Finjo de noite, enquanto janto,
ter a voz rouca, de um deus grego,
que faz medo, que atemoriza,
que tudo escurece, como num mito.

Mas de nada me serviu.

Que importa o que sei.

Deixo arder um cigarro todo inteiro.

De nada me serviu
imaginar-me
tão grande e tão mau.

Nem as cordas, as fitas,
as insígnias e ornamentos,
o lacre e o cuspe.

O rodado de um carro
abrindo sulcos profundos
na lama do Tempo.

Uma montanha lunar.

E a própria Lua,
muito cheia.

Está tudo tão longe
deste nonsense.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Fernando Pessoa, Poesias inéditas, 1930-1935.

5 de Abril de 1935

O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal :
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.


Edições Ática, Lisboa, Março de 1955, p. 192.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

E. Vila-Matas, Dublinesca, Contemporánea DEBOLSILLO, p.127.

" Nadie conoce esa gran confusión suya entre la literatura y Deneuve. (...) Asocia, desde tiempos ya casi inmemoriales, a Deneuve con la literatura misma. "

domingo, 5 de junho de 2011

domingo, 22 de maio de 2011

Incêndio.

Arde, à noite, o linho
rendado dos teus lençóis.

O espaldar de mogno
do leito pesado.

Sobe, em labaredas,
o sonho de breu
do teu sono convulsivo.

E o vulto,
lambido pelas chamas
desta solidão.

sábado, 23 de abril de 2011

Não Ser, de D. H. Lawrence.

As estrelas que se fecham e abrem
Caem na superfície do meu peito
Como estrelas num charco.

O vento suave a soprar fresco
Lança pequenas cristas uma a uma
De ondas sobre o meu peito.

E as ervas escuras sob os meus pés
Parecem flutuar em mim
Como ervas num riacho.

Oh ! como é bom
Ser essas coisas todas
Já não ser eu.

É que, vê bem,
De mim sinto o cansaço.


D.H.Lawrence, Gencianas Bávaras E Outros Poemas, Versão de João Almeida Flor, Regra do Jogo, Lisboa, 1983, p.37.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Relatos. papéis recuperados.VIII. De António Tavares Manaças.

VIII

Venham os construídos constrangidos
lúcidos só pelo lado de fora
das palavras que aprenderam a usar
como se houvesse ideias ou
comportamentos nisso. Venham.
Aqui se lhes oferece uma importância necessária
como a recuperação de qualquer coisa. Recupera-se aqui
este momento carregado de dias futuros. E
isso é também o vosso peso.
Venham.


estar ou a cabeça na barriga, António Tavares Manaças, Forja, dezembro de 1981, p.41.

( dedicatória: " É pró Zé-
Um abraço muito
grande
do António.
14/ Maio/ 83 )

terça-feira, 19 de abril de 2011

Rápido, de Carl Sandburg.

Viajo de rápido, num dos melhores comboios do país.
Lançadas através da pradaria, na névoa azul, no ar
escuro,
correm quinze carruagens com mil viajantes.
Todas estas carruagens serão, um dia, montes de
ferrugem;
homens e mulheres que riem
no vagão-restaurante, nas carruagens-camas, hão-de
acabar em pó.
No salão dos fumadores pergunto a um homem qual
o seu destino.
" Omaha ", responde.


Carl Sandburg, Antologia Poética, Tempo de Poesia, número 4, série de poesia a cargo de Alexandre O´Neill, Lisboa, s/ data, p.38.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Agadir.

Estas palmeiras de Agadir
ao pôr-do-sol, o disco rosa
avermelhando a areia, os palmitos
absurdos, os telhados em leque...

Os bazares de Agadir e os homens,
atarefando-se irrequietos,
de djelaba e babuchas berberes...

Os sonhos em Agadir, o sangue,
a diluição dos corpos, o silêncio
inquietante da noite, da noite quente,
da noite onduleante, num abandono
de palmeiras esquecidas lá fora...

Oh, Agadir, Agadir...

sexta-feira, 8 de abril de 2011

terça-feira, 5 de abril de 2011

Light And Lonely.

Onde estão as palavras
que tornam fácil a poesia,
as gaivotas e as nuvens brancas,
num céu azul. Onde?

As crianças que riem
e correm, pelos jardins?

O regresso dos emigrantes
e a bondade de quem os espera?

Onde estão esses versos que
cantam os poetas populares?

E as raparigas que os escutam,
de mãos postas? Onde estão?

Se eu só encontro o silêncio
e a solidão, onde estão agora
as palavras que tornam fácil
a poesia e a vida mais bela?

Onde?

Jean FERRAT chante ARAGON aimer à perdre la raison

terça-feira, 29 de março de 2011

Ela. ( a pobre fugitiva ) .

Dispersas linhas,
sem alinhavo e

sem lembrança

de coisa alguma,
que o tivesse valido...

Nada.

Um espelho de luz
que a cigana
de olhos negros,

pela tarde, descobre
e admira,
a pobre
admira,
extasiada.

Como se não fosse,
ela própria,
essa autêntica miragem.

Ou não fosse ela,

ser distraída
pelo entardecer.

A pobre fugitiva,
que não sabe para onde ir.

A cigana,
coitada.

Bairro Alto.

Ficaram as salas vazias,
acesas para nada.

Uma ou outra luz,
ilumina os corredores,
vazios,
de ninguém.

O triste espectáculo
duma colectividade sem
ninguém.

As salas abertas,

vazias,

simplesmente
acesas.

segunda-feira, 28 de março de 2011

A Guarda De Ferro Da Varanda ; Barbey D´Aurevilly .

Estava esculpida uma garra de leão
no batente do portão, humedecido ainda
pelo nascer do dia,
ladeado por dois muros
muito altos e a copa,
mais alta ainda de
grandes castanheiros,
de grandes carvalhos
adormecidos, de tão robustos.

Fez-se o silêncio, enquanto ainda ecoava
a chamada seca, batida no ferro pintado
da garra de leão.

Contudo,
ao contrário do que se pudesse supor,
a resposta fez-se ouvir de imediato.

Um som de gonzos, entrecortados por
apitos ferozes e gargalhadas em eco.

Um restolhar de folhagens na selva
e o súbito silêncio,
tão comprometedor.

O eco das vozes lá dentro,
dos silvos, dessas gargalhadas difusas,
perdidas em ilusões,
desfeitas pela geada
fria da manhã
e pela sinistra incomodidade
dos lugares mais ermos,
nas casas mais isoladas,
quem sabe...

Quando abriu o portão, o conviva
fazia de lacaio, de lacaio perdido,
sujo, desabotoado, molhado,
fazia de parvo
e não sabia,

parecia um alarve,
a rir,
a rir.

( A chuva não pára
de cair ).

sábado, 26 de março de 2011

segunda-feira, 21 de março de 2011

Lol, Por António Nobre.

A dezoito de Março, num ano já distante,
um ano longínquo, o ano de mil e novecentos,

que sono trago eu...,

morria na Foz do Douro,
em sua casa,
agora para si reaberta,
o Poeta António Nobre,

laughing out laud.

Para uma só noite,
a sua última.

Depois,
mais nada.

António
Pereira Nobre
morreu,

pronto.

domingo, 20 de março de 2011

Misora Hibari.

Domingo de Manhã, Muito Cedo.

Não disse uma palavra sobre o
tempo, pediu um café que bebeu
sozinho ao balcão, tão cedo de manhã.

Disse não se lembrar do que falou
enquanto bebeu o café.
Nem depois.

Entrou para o carro pelo lado esquerdo
e quando rodou a chave de ignição,
acendeu o tablier.

Ouviu-se uma voz
na telefonia.

Depois, recebeu o Sol muito forte
pelo lado esquerdo da cara,
quando começou a guiar.

sábado, 19 de março de 2011

De Noite.

Vou tomar um café às escuras,
sem acender nenhuma luz,
à luz dos candeeiros da rua,
às escuras, pela casa
e na cozinha.

Uma chávena de café com
açúcar mascavado,
mas muito pouco.

E um copo de água.

Vou para o sofá,
às escuras.

美空ひばり 「悲しい酒」

津軽のふるさと

美空ひばり 花笠道中

美空ひばり - 川の流れのように

美空ひばり-車屋さん

Disse Que Não, Disse Que Não E Fiquei Sem Palavras.

2.
Se não fossem as sombras, aqui e ali, de árvores jovens,
pessegueiros, pequenas laranjeiras, arbustos exóticos de jardim,
pitangueiras e jindungueiros, debaixo de Sol,
enquanto espreguiçava, um pouco distante, sob
o telheiro improvisado,
debaixo de Sol,
e tinha
o Mundo por desbravar.

Se não fossem as sombras,
a repetição dos dias,
o conhecimento das estações,
a rega dos pequenos vasos,
tão atenta,
os cuidados merecidos
do gato,
ele-próprio,
se não fossem as sombras,
nem eu saberia falar,
ou eu nada saberia,
de nada,
nem dessas sombras,
numa tarde de Sol.

Os Meus Vizinhos.

Se não fossem as sombras que encontrei pela tarde,
em que o Sol foi descendo, enquanto subiam as sombras
pela esplanada,
até a contraluz atingir o muro,
a parede ao fundo,
as arcadas escuras,
com o próprio Céu a escurecer cada vez mais,
as sombras dilatando,
crescendo, até ser noite, muito escura,
e as senhoras, ou os senhores,
aqui e ali, nessa noite escura,
saírem à rua,
a levar os sacos-de-lixo,
riscos amarelecidos de roupão turco
e sandálias,

ou a passear o cão,
altivos, serenos, de cigarro na mão,
sumindo depois para dentro dos prédios,
da luz do hall,
subitamente apagada.

terça-feira, 15 de março de 2011

Por Fukushima e Sendai.

Por Fukushima
e Sendai
eu curvo-me
em reverência.

Dói-me a cabeça
por Fukushima
e Sendai.

Dói-me.

Aqui estou,
em silêncio,
por Sendai
e por Fukushima.

Aqui estou.

segunda-feira, 7 de março de 2011

O Moleiro.

Este moleiro vulgar,
homem do povo que só sabe
buscar o vento, soltar as velas,
fazer rodar a mó
e com mãos imundas,
guardar a farinha branca
de trigo em sacos de juta,
que o lisboeta egoísta
depois consome,

que sabe este pobre homem
que agora dorme, feliz,
se tu, de madrugada,
atravessas a Estremadura, veloz,
no teu automóvel tão rápido,
para depois
te vires deitar,
em silêncio,
na minha cama?

Que sabe, o pobre homem,
destes lençóis, tão alvos
como a sua farinha?

Pouso Noturno - Imagem diretamente cabine de comando

Pouso porta aviões

domingo, 6 de março de 2011

Hilo Chen.

W. G. Sebald na Ilha de Rousseau, a Ilha de Saint-Pierre, no Lago de Bienne.

(...)
Em particular à noitinha, depois de os excursionistas do dia terem voltado para casa, a ilha mergulhava num sossego como já quase não se encontra no espaço da nossa civilização e nada bulia além, talvez, das folhas dos grandes choupos com a brisa que por vezes perpassava pelo lago. Os caminhos revestidos de fina gravilha calcária iam-se tornando mais claros à medida que eu os ia percorrendo à hora em que se adensa o crepúsculo, e passei por cercados de pasto, por um campo de aveia sem amanho, por uma vinha e por uma barraquinha de vindimador até que, já sem luz do dia, cheguei ao talude que sobe para a orla de um faial e daí onde vi acender-se, uma a uma, as luzes na margem oposta. O anoitecer parecia subir do lago e por um instante, quando olhava para baixo, formou-se dentro de mim uma imagem semelhante a uma estampa a cores num velho manual de ciências naturais que mostrava, mas muito mais bonitos e nítidos do que nesses desenhos a cores, um sem-número de peixes variados, mostrava-os a dormir nas correntes profundas entre negras paredes de água, uns atrás dos outros e uns por cima de outros, grandes e pequenos, sargos e ruivos, vairões e muges, bogas e lúcios, trutas salmonadas e trutas-comuns, solhas e barbos e tainhas e percas e carpas.
(...)

W. G. Sebald, O Caminhante Solitário, " J´aurai voulu que ce lac eût été l´Ocean... ", Editora Teorema, Lisboa, Setembro de 2009, pp.43 e 44.

Casa na Lapónia.

sábado, 5 de março de 2011

As Boninas 2.

As Boninas.

As boninas crescem
espontaneamente,
viradas para a luz
do Sol.

O Planeta Terra
devia ser um
tabuleiro de
boninas.

terça-feira, 1 de março de 2011

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Beco- Sem- Saída.

No beco- sem- saída
os cães fazem chichi
contra as paredes
e os gatos assistem
impávidos,
nos muros inacessíveis.

As adolescentes vêem tirar
fotografias digitais,
num cenário " di guetto ",
para mostrar no Hi5.

Chegam furtivas,
para que os rapazes
as não vejam.

À noite, o beco tem
um cheiro fétido
e até parece repousar,
de tão funesto.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Fim-de-Semana.

Não adivinho o céu
no tecto branco da sala
e a lâmpada escondida
pelo globo de papel
está há muito fundida.

Não me sirvo das luzes da casa.
Tenho candeeiros espalhados,
que filtram o artifício
de abat-jours suaves.

Hoje não sei se choveu.
Não ouvi a água a cair
nos estores, nem os pássaros
se vieram empoleirar aos trinados
para desespero do gato,
que os odeia.

Tinha no frigorífico os alimentos
necessários para estes dias
de reclusão, a terrina de veado
com cognac, o chèvre branco
de tão puro, as azeitonas pretas
de Portalegre, os limões para o salmão
fumado e o pão de Mafra, o café forte,
as massas com ovo e as garrafas escuras
de um vinho do Douro.

Não sei da correspondência
que me chegou, não fui ao hall
abrir o cacifo do correio.

Vejo o Mundo pela televisão
e anoto as minhas emoções
no Facebook.

Aqui e ali, os amigos vão clicando
" Gosto ", sem saber que há muito
não saio de casa.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Que será, Que Será...

Pouso as mãos no tampo frio da mesa de vidro,
a janela aberta,
uma noite chuvosa que seria cinzenta
se fosse dia,
o cigarro aceso,
um copo de whiskey onde se
entrechocam duas pedras transparentes de gelo
de água mineral,

pouso as mãos, porque não devo
encostar a cabeça e sentir
o limite liso, polido e frio
do sentido que dou à minha vida,

pouso as mãos e só depois reparo,
tenho os dedos longos,
as mãos abertas,
as mãos quietas
na noite que sobe,
tão quieta
de mim.

Tenho a cabeça
tão cheia de tudo
e não penso,
para quê?

Está uma noite fria
e não pára de chover,
sequer.

Talvez este vagar
seja eu a tentar
pensar,
mas não sei,
não sei
se será.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A Casa, Numa Tarde Chuvosa de Domingo.

Se esta minha casa fosse escura,
escura e triste,
agora fecharia ainda mais as portas,
cortaria a luz nos corredores,
para acender o candeeiro de abat-jour amarelo
e passar a tarde a ler.

Se esta minha casa tivesse
uma varanda aberta sobre a cidade,

como nesse prédio de Ruy Athouguia,
num brevíssimo décimo segundo andar,
onde morei há séculos e que
como todas as casas em que vivi
e foram imensas,

porque a casa onde moramos
é sempre um pouco de todas as outras,

eu agora recordo,

estaria então aberto à luz
e à introspecção
e passaria a tarde toda a ler,
Hemingway, Vila-Matas,
Piglia,
Cortázar.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A Pequena Pá.

Os navios viraram suavemente.

Estava escrito em inglês.
Eu li.

Palavras que o vento
levava,
que o vento acabou
por levar.

Terei alguma vez
ouvido isto?

Trago um simples caco
desta escavação.

Um pequeno fragmento
de osso de baleia,
a gravura antiga
de uma orca.

A fogueira adormeceu,
depois extinguiu-se.

Os teus olhos
fixos no céu.

The Fiery Furnaces - Even in the Rain (Official Video)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Memória da Infância.

Aprendi a nostalgia sob o calor forte
de Luanda.

E a angústia.

Às sete horas da tarde de Domingo,
na véspera de um exame,
ficava de coração apertado e só,
na enorme nave central da Igreja
da Sagrada Família.

A felicidade, também, claro.

Céu azul, mar azul
e os banhos de mangueira
e alegria, na relva
do jardim.

Tive sempre cinquenta amigos.

E namorei, miúdo ainda,
a dançar Otis Redding,
encantado.

E Percis Sledge.

Ainda hoje não esqueço
Don´t Ever Change,
dos The Kinks...

E as acácias em flor.

Os cajús,
tão difíceis de comer.

As viagens para o Motel da Cela,
que começavam de madrugada
e em que só se parava trezentos quilómetros depois,
para tomar o primeiro café.

As Páginas Soltas na rádio à meia-noite,
que era uma senhora que lia poesia,
com uma voz lindíssima
e de quem já não sei o nome.

Os paraísos artificiais de depois
e em que fui tão precoce
e pioneiro.

Moldei aí o meu carácter
e ainda hoje me vejo isento
e recto, como quem prescruta
a linha do horizonte com um binóculo,
ou ouve os pássaros na floresta.

Por isso gosto
de olhar o mar.

De buscar Sintra
e encontrar a luz
e o aroma
da cidade onde nasci.

De sentir saudades
de mim.

Foi Há Cinquenta Anos...

Ao Carlos Augusto Neves e Sousa Ramos, meu amigo de sempre.

Há cinquenta anos, em Luanda, fui com a minha mãe, uma jovem de vinte cinco anos e a Dra. Elisa Canas, Directora da escola primária Dr. João das Regras, na Maianga, onde estudei até à quarta classe, participar nos funerais dos polícias mortos pelo primeiro ataque do Movimento de Libertação dos Povos de Angola, que dera início à Guerra Colonial.
Recordo que houve tiroteio junto ao Cemitério, que viemos em grande correria a fugir para o carro e que, de regresso à cidade, estivemos presos num engarrafamento monumental, o primeiro da minha vida.
Em casa, à noite, a família reunida na sala, com enorme preocupação e eu, escondido na dispensa, pensava poder viver ali refugiado para o resto da vida... Dormiria deitado no chão e teria toda a comida de que necessitasse nas prateleiras...
Oh, que inocência...
Meu pai, para fugir à confusão de Luanda, resolveu levar a família para a nossa fazenda de café, no Quanza Norte, a fazenda Montes Claros, que fora do meu avô, a Oliveira Gomes e Filhos, Ltd.
Aí foi pior... Em Março, rebenta a União dos Povos de Angola nesses campos de colonos e cafezeiros, com as atrocidades dos ataques de surpresa e à noite, que são bem conhecidos.
Avisado pelo PBX desses ataques, o meu pai só teve tempo de meter a família num Jeep e fugir para Luanda. Só conseguimos chegar ao Úcua, onde me recordo de dormir num armazém, com outras crianças, mulheres e idosos, protegidos pelos homens que no exterior faziam guarda da forma que podiam.
Acabámos a viagem de regresso em coluna militar, que para o efeito nos tinha ido lá buscar.
Nunca mais voltei ao Quanza Norte. Mas tenho para sempre na minha memória as brincadeiras que por lá fazia, na fazenda e no Bula, uma vila próxima, onde os meus pais tinham uma casa fabulosa, de que tenho ainda muitas fotografias.
Foi aí, nos jardins da casa, que aprendi a andar, sempre protegido pela minha lindíssima mãe.
Vejo-o hoje nas fotografias que preservo, com imensa ternura.
E penso... já lá vão cinquenta e cinco anos...
E a Guerra Colonial faz agora cinquenta anos.
Hoje, a minha mãe, que já tem setenta e seis anos e a minha irmã, com cinquenta e um, vão viajar para o Recife.
Vou agora sair de casa, para me ir despedir delas ao Aeroporto da Portela.