sábado, 26 de junho de 2010

Diário. ( Fevereiro de 1985. )

O SOL.

É o verdadeiro Deus do Universo
e terá imaginado o Homem.

NUVENS.

Imensas, flutuando
em seu belíssimo azul.
Sopros de água fria
pairando sobre a Terra
nevada.

MÚSICA.

O sono dos pássaros?

TER.

Porque não acalmava nunca
o furacão do espírito,
sem ousar maldizer esse chão
da Terra a seus pés.

QUERER.

Sabia que as palavras apagavam
a estrita observância do corpo.

FAZER.

Mas as palavras lavavam
o corpo, profusamente.

PODER.

Poder é a palavra transformada
em corpo.

SER.

É tudo.

Diário. ( Boletim da Biblioteca da Escola Preparatória de Benedita, nº2, Fev/Maio, 1985.

OS PLANETAS INTERIORES...

Mercúrio.

Sabe bem viver.
Torna-se fácil ao tacto,
torna-se redondo e largo
e é verde como as folhas
das plantas à superfície.
É bom respirar.
É alegre e fresco,
é branco e faz vento.

Mas agora perscruta-se
a lenta rotação,
faíscas de pedras acesas
em Mercúrio
e o Sol anda perto.

Vénus.

A Primavera azul e verde sobe do pincel
de Boticelli, são insectos e são abelhas
e as flores fragilíssimas.
As mulheres não são
como o lotus.

Terra.

Conquista o fogo e a guerra
do Verão, um dia, Prometeu!
O mar é salgado, sob
as nuvens
desmedidas.

Marte.

Marte é grande e mais
frio do que a cidade de Moscovo.
Marte, nas sombras,
cobiça os mares da Terra,
acossado de meteoritos...

... E UM EXTERIOR.

Júpiter.

Para lá de Marte há o vazio
e há Júpiter.
Entre ambos vogam as pedras arrancadas
ao fogo e agora extintas,
agora que Júpiter fecha os olhos
e em névoas espessas se reconcilia.
Explodem lentamente nuvens
e chuvas torrenciais, dum fogo de
trovoada metálica, e todo o planeta
é de um fluido.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

http://www.youtube.com/results?search_query=l%60albatros+leo+ferre&aq=f

O Albatroz. ( Charles Baudelaire )

Por mera brincadeira, os homens de equipagem
Caçam enormes aves do mar, albatrozes
Que, indolentes, costumam seguir a viagem
Do navio percorrendo abismos tenebrosos.

Assim que sobre aquelas tábuas são largados
Os reis do céu azul, envergonhados, trôpegos,
Deixam cair, humildes, as imensas asas,
Que arrastam pelo chão, como remos já soltos.

Como está mole e frouxo o alado peregrino!
Ele, que tão belo foi, ei-lo cómico e feio!
Um espicaça-lhe o bico, usando o seu cachimbo,
E um outro, coxeando, imita o pobre enfermo!

O poeta é igual ao príncipe das nuvens
Que se ri do arqueiro e afronta a tempestade;
Exilado na terra e no meio de apupos,
As asas de gigante impendem-no de andar.

Baudelaire, As Flores do Mal, Tradução de Fernando Pinto do Amaral, Assírio e Alvim, Lisboa, 1992, p.55.

Leo Ferre, Les Poetes: Volume 2, 7. L`Albatros, 1967, Barclay.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Silêncio 2.

Lá longe,
na clareira
iluminada
a querosene.

Em calções
e lenço de suor
ao pescoço,

vives a tua vida
ainda,
envolto na cor
da savana.

Depois,
dormes ao relento
da alma nua.

Os teus olhos,
sacudindo as moscas.

Poemas Inconjuntos. ( Alberto Caeiro ).

É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar só ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?

Poemas de Alberto Caeiro, Edições Ática, 4ª Edição, Lisboa, Setembro de 1970, pp. 88 e 89.

domingo, 20 de junho de 2010

História de um muro branco e de uma neve preta. ( José Saramago )

" ( ... )
Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: " Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cor, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira. " Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam. Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando " bom ", " mau ", " suficiente ", como se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
" Porquê? ", pergunta a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: " Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu. " Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: " À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito de uma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu? "
Muitos anos depois de estas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: " E eles ainda estão tristes? ". Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso. "

Goria in Excelsis, Histórias Portuguesas de Natal, Antologia, Vasco Graça Moura, José Saramago, História de um muro branco e de uma neve preta, Colecção Mil Folhas, Público, 2003, pp. 286 e 287. ( Transcrição feita apenas da segunda parte da história, a da neve preta. )

sábado, 19 de junho de 2010

José Saramago.

A trama foi sendo tecida a negro
e as vírgulas,
as vírgulas desenhando cúpulas magníficas,
vidros nas portadas dos cafés em princípio de século,
grutas,
jangadas fantásticas,
elefantes,
barcarolas.

Um nome mágico e austero
e outro, nome doce de mulher...

Por caminhos que as ervas,
daninhas, cobrem,
estás tu hoje,
soprando a brisa,
agitando as copas.

E não é que desse sopro leve,
se vão soltando letras,
vírgulas,
maiúsculas,
parágrafos,
numa mancha negra de bordado?...

E é aí que tu estarás
para sempre,
encruzilhando as linhas
e a fazer-nos pensar.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Os Pardais.

A tarde desce no bico dos pardais,
que escolhem estes plátanos
para refúgio instável na escuridão
que aí vem.

As suas pálpebras,
membrana subconsciente
da leveza da vida,
vão engolir a abóbada
barroca,
absurda,
doutro dia que acabou.

Pudesse eu adormecer assim,
tão leve e sem sonhar...

Descobrir-se-ia em mim,
escondido pela folhagem,
a mesma inocência,
a mesma pulsação,
tão subtil.

domingo, 13 de junho de 2010

POÉTICA ( II ). Vinicius de Moraes.

COM as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitectura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo.
( Um templo sem Deus. )

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
- Entrai, irmãos meus!

Vinicius de Moraes, O Poeta Apresenta O Poeta, Antologia seleccionada e prefaciada por Alexandre O `Neill, Cadernos de Poesia, Publicações Dom Quixote, 2ª Edição, Julho de 1969, p.155.

( Dedicado à minha primeira leitora, Dra. Marisa Queiroz, que teve a simpatia de me dar alguma da sua atenção. Com que prazer recebo alguém que me lê de tão longe... )

sábado, 12 de junho de 2010

Delírio Amoroso.

- Espera um pouco!
Os convidados vão chegar...

As velas só serão acesas
quando todos estiverem no átrio,
prestes a entrar...

- Tudo pronto na cozinha?
Quero o foie-gras fresco
e o Alvarinho a 6ºC.

As bolachinhas salgadas?
E as tostas de pão de alho?

Deixem ficar só a toalha à mesa,
essa linda toalha de linho,
debruada a tricot pela minha avó!

Os pratos e os talheres ficam no aparador.
Depois,
virão preparar a mesa.

- Tu...
Espera um pouco ainda!...

Este ramo de orquídeas
é para ti!...

Deixa-o nesse lindo jarro verde,
no closet.

Os convidados estão a chegar.

Tourada.

Oh, sabe bem
ser o canastrão,
quando apetece.

Ridículo ao cravar
as últimas farpas
nas costas do animal
moribundo.

E todo galo depois,
a pedir o aplauso
do público,
gritando em falsete,
" Olé! "

Fado.

Cantei só uma vez e doeu,
pois marcou-me para sempre.

Trago no coração
dois botões de rosa
que não florescem.

Apenas incham
e sangram
a fatalidade
do meu destino.

Manada Selvagem.

A força de tantos cavalos
supera a sua agilidade
e ultrapassa mesmo
toda a sua graciosidade.

São alavancas,
os seus quadris.

E esgares doridos,
o seu resfolegar.

Avançam cegos na pradaria
e têm a força de touros
quando começam
a escouçear.