domingo, 20 de junho de 2010

História de um muro branco e de uma neve preta. ( José Saramago )

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Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: " Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cor, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira. " Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam. Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando " bom ", " mau ", " suficiente ", como se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
" Porquê? ", pergunta a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: " Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu. " Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: " À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito de uma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu? "
Muitos anos depois de estas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: " E eles ainda estão tristes? ". Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso. "

Goria in Excelsis, Histórias Portuguesas de Natal, Antologia, Vasco Graça Moura, José Saramago, História de um muro branco e de uma neve preta, Colecção Mil Folhas, Público, 2003, pp. 286 e 287. ( Transcrição feita apenas da segunda parte da história, a da neve preta. )

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