quarta-feira, 26 de agosto de 2009

21.VIII.2009

É a morte que nos acorda por vezes,
esse reverso tão luminoso da Vida,
para o mais profundo nada,
o mais completo temor.

É um sobressalto
que faz a tarde mais doce,
sem sequer o querermos,
e torna irresolúvel
a tremenda tragicomédia
que a Vida é.

Mas, que importa isso agora,
se lá fora está um calor atroz
e Agosto se estende
por mais uns dias
ainda?

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Raul Brandão, op. cit., pp. 332, 333

O promontório é um punho nodoso, com dois dedos estendidos para o mar- a ponta de S. Vicente e a ponta de Sagres. Nos dias sem sol, como o de hoje, os dedos parecem de ferro: apontam e subjugam-no. Em frente o mar ilimitado; em baixo o abismo, a cem metros de altura. Ventanias ásperas descarnam o morro cortado a pique, e no inverno as vagas varrem-no de lado a lado.
Sagres é o cabo do mundo. Levo os pés magoados de caminhar sôbre pedregulhos azulados, num carreirinho, por entre lava atormentada. Do passado restam cacos, o presente é uma coisa fora da realidade, grande extensão deserta, pardacenta e encapelada, com pedraria a aflorar entre tufos lutuosos; ( ... ) O mar- é verdade, esquecia-o- mas o mar como imensidade e tragédia, e ao lado a gigantesca ponta de S. Vicente, só negrume e sombra. Mar e céu, céu e mar, terra reduzida a torresmos, e o sentimento do ilimitado. Esta grandeza esmaga-me.
Grande sítio para ser devorado por uma ideia! ( ... )

Raul Brandão, op. cit., pp. 328, 329

Atravesso Portimão de olhos postos no castelo de Arade, onde o velho poeta sonha com o Fausto, e talvez como êle em recomeçar a vida. A luz é cada vez mais viva. Um homem com dois cabazes apregôa na rua: é um tipo sêco e tisnado de mouro, de camisola azul e perna nua. Passa uma carrinha guizalhando, e logo atrás outro burro com bilhas de água fresca. É extraordinário o que êste pobre jerico inocente e peludo, de olhos límpidos, trabalha no Algarve. É êle que leva a fruta ao mercado e tira a água das noras. Lavra as terras calcinadas, transporta pelas estradas sòlheirentas, adornado com cordões vermelhos, quási uma família a dorso.(...)
Detenho-me um instante na cenográfica praia da Rocha, extasiado nos dois grandes penedos destacados e num fio de areia doirada ao pé da água azul- tudo pintado por Manini agora mesmo. A um lado a ponta do Altar entra decidida pelas águas; do outro, o esfumado Lagos mal se entrevê muito ao longe. (...)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O Último Verão

Desceste os degraus vezes sem conta,
para uma praia abrigada pelo molhe,
do outro lado do rio.

Em frente,
a enorme extensão de areia
mais parecia a bancada principal
de um autódromo,
numa tarde colorida de Domingo.

Foi o vento sueste que trouxe
as correntes quentes para a praia.

Tu gostavas de mergulhar
e passavas muito tempo
dentro de água.

Depois, apanhavas conchinhas
na rebentação,
ou ficavas simplesmente de pé,
porque isso era bom.

Sentavas-te, já tarde,
na varanda de casa,
para contemplar a Lua
em Quarto Minguante.

Uma noite, pela auto-estrada fora,
levei-te ao Cabo mais ocidental,
junto ao grande farol,
pelo simples prazer
de viajar contigo.

Nem tempo houve para parar
e observar o céu tão estrelado,
tão maravilhosamente deslumbrante
e aceso.

Deste acaso por mim,
em todo esse tempo
de distracção?
Pois se nunca te levei flores
pela manhã,
nem perfumei o ar
à tua volta,
de lavanda,
ou alfazema fresca...

Oh, felicidade rara,
eu poder amar-te tão só,
e o tempo a escoar-se,
tão perto já
de se apagar,
para nós dois.

Vimeiro

Memória desses dias
junto ao mar,
o teu sorriso espelhava
a força das ondas.

O céu aberto
na limpidez dos teus olhos.

Lembrança das verdes falésias,
na curva dos teus ombros,
no teu corpo deitado, tão suave.

Recordo ainda
o voo lento das gaivotas
e a neblina fresca a formar-se
ao meio da tarde.

A minha entrega ao Mundo,
na serenidade dos teus braços.

E depois as crianças,
logo pela manhã,
bebendo a Vida
nas suas tropelias
sem fim.

Os Pescadores, Raul Brandão, edição definitiva, 10º milhar, Livraria Bertrand, sem data, pp.209,210, 211

" Vou primeiro ao Baleal, que é a mais linda praia da terra portuguesa. Não passa duma grande rocha desligada da costa e fundeada a trezentos metros- mas esta rocha é uma ossada, e talvez o último vestígio da Atlântida, saindo do mar azul a escorrer azul, e prêsa à terra por um fio de areia que nas marés mais vivas chega a desaparecer. Dêste ancoradouro, com uma baía ao sul formada pelo Carvoeiro, e com outro côncavo ao norte entre a rocha e a costa, vê-se o esplêndido panorama da terra, do mar e do céu. Vive-se extasiado e embebido em azul, no meio do mar azul, no meio do mar verde, no meio do mar dramático. Voga-se em tôda a luz do céu e em tôda a côr do mar. Dum lado o areal em circo e aquele grande morro estendido pelo mar dentro; do outro, e até onde a vista alcança, todos os tons da costa, desde as labaredas das terras sulfurosas e as chapadas negras dos rochedos, com riscos de vermelho, até ao biombo que vai passando e desmaiando, primeiro roxo com aldeias ao sol e fundos verdes de pinheiros, depois transparente até atingir o indistinto e o diáfano numa última palpitação de claridade nublosa. E tudo isto muda de côr e se transforma segundo as horas que passam. Há momentos em que é doirado, de manhã ou à hora do poente. Há outros em que me sinto abismado em azul e atascado em azul. O movimento das ondas esmorece e acalma. À volta só luz e côr. A costa some-se. Uma apoteose de oiro e verde lá no fundo. Do horizonte à praia corre e cintila a esplêndida estrada do sol. E agora - reparem! reparem! - o mar é verde e o céu perdeu a côr... (...) "

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

29 de Julho de 2009

Luzinhas da cidade à noite,
candeeiros antigos do bairro vizinho.
O som de um motor cansado
perde-se ao longe.

Ninguém imaginaria ver de dia,
as praias cheias de gente,
de cores e de luz.

Tu, regressando da água,
num sorriso aberto,
o cabelo a escorrer.

Agora, tudo é silêncio
e solidão.
E a tua ausência
dói tanto.

No Messenger

Falei contigo em silêncio,
como se falasse para mim.
Um arco-íris da mudez.
A mais absoluta luz.

Falei contigo, sem nenhuma sombra
de dúvida.

Depois, foste.
Voltaste ao teu Outro Mundo.

A doce finitude
da Vida.

E eu gostar
tanto de ti.

24 de Fevereiro de 2009. Magoito.

Porque é que tudo
o que faço e vejo
me devolve
a sensação de estar contigo,
a imagem da tua presença?

Porque tu preenches a casa toda,
o ar que me envolve
e o doce passar do Tempo.

Amor,
eu quero continuar ao Sol,
perto da força do mar,
sentir ainda esta brisa fresca,
que é a tua respiração
em mim!

PARA A L. P.

Dorme um sono bonito,
no Báltico a terra
está branca de neve.
Um sono suave
e a neve ilumina
a noite das renas
na Lapónia.

Dorme assim,
serenamente
e a vida fervilha
em Kuala Lumpur.

Os gráficos invertem
as tendências bolsistas
e aos microfones,
vozes nítidas anunciam
os próximos voos, nos aeroportos.

Tu estás quieta a dormir
e as tempestades fustigam
os petroleiros no Índico.

Os indonésios
ouvem os transistores em onda-curta
nos camarotes e sonham.

No bloco operatório,
os cirurgiões manipulam
com destreza os pequenos bisturis.

Dorme um sono feliz,
meu amor,
deixa os golfinhos
atravessarem as ondas
com alegria.
As baleias cantarem
no oceano profundo.

Os radares captam
movimentos próximos
e tu continuas a dormir.

Os polícias gesticulam
para controlar o trânsito caótico
das grandes metrópoles.

E tu dormes,
envolta num édredon macio,
tu dormes ainda,
um sono bonito.

PARA A L. P.

Não estás agora aqui
e os camareiros atravessam
os corredores, nos hotéis.
As enfermeiras repousam
nas suas salinhas nos hospitais.
E os aviões têm os motores ligados
na pista dos aeroportos,
para um novo voo.

Tu não estás
e as nuvens cobrem o céu
da cidade.
Os eléctricos atravessam vazios
a Baixa deserta.
Tu não estás
e os noctívagos correm furtivos
os bairros onde há diversões.

Depois, ao amanhecer,
a cidade anima-se para mais um dia,
mas tu não estás.

Fechada no teu quarto,
tu estás a dormir,
tu descansas ainda.

Meu amor,
tu estás tão exausta
da rotina diária.
E até de mim,
que te peço tanto.

Deixa-te estar assim,
tu precisas descansar,
todo o tempo do Mundo,
meu amor.

Desliga o telefone,
não ouças ninguém.

PARA A L. P.

Pedra a pedra
se arma o equilíbrio
da geometria.

O sobrevoo tão sereno
dos planetas em volta
da sarça ardente.

O seu regresso
em plenitude.

Levaria comigo o teu rosto
numa viagem
sem retorno.

A luz de água azul
do teu rosto.

Todos os fogos acesos
na noite
pura e doce
do teu rosto.

E fundaria algures
uma nação milenar
com as letras
lisas, digitais,
do teu nome.

Pintura

A penumbra interior,
a luz coada
duma janela oculta.

O vulto doce
virado sempre para quem olha.
A espátula serena
do seu corpo.

Depois,
mais lentamente ainda,
como se deita,
ou recolhe os pés,
para os enfiar à pressa
nas sandálias.

Anjo de Luz ( Alexandre Herculano )

Tu és uma mulher
de sonho.
Tu és
o puro vazio branco
da luz.
E não sabes que és.

Porque é que
são os pássaros que
vejo mais cedo
na manhã azul?

Ultra-Romantismo

Não há estrelas neste céu opaco
em que as nuvens densas cerram todo
o horizonte.

Os melros não revolteiam pelos jardins,
nos seus trinados breves
e os pirilampos há muito
não acendem as suas asas
pelos campos.

De quando em quando, pia
a coruja que habita o campanário
da igreja
e pela janela do quarto
vejo a minha alma casar-se
com os ciprestes do cemitério.

E é só quando sopro a vela
na mesinha,
que sinto a tua figura encher completamente
o espaço em meu redor.

Tu, dormindo, não dás por nada.

PARA A L. P.

É um olhar que se distancia
e faz-se silêncio, nesse olhar.
Um gesto por fazer
traz a solidão a esse gesto.

Os patos, no entanto,
voam em fila sobre o mar.
E os ursos suspendem a rota
dos salmões, subindo os rios.

Um sorriso breve
e a água tomba em cascata
desse sorriso.

Rolos de pó que os jeeps largam
pelos caminhos.
Sombras fantásticas atravessam
as dunas nos desertos.

O corpo tão imóvel
e o tempo pára nessa imobilidade.

Tanta vida passada
e que não passou,
ainda.

VIAGEM ( Para a L. P. )

Olha as bicicletas
ali arrumadas,
olha as bicicletas.

Parecem trapos sujos,
para ali atirados.

É um segredo
que tu sabes.

O Sol à tarde,
nas vitrines
abertas.

VERÃO

O silêncio tão austero
que nasce dentro de casa.
Como se fosse inóspito
e deserto
o espaço em volta.

O gato dorme
ao fundo da cama.
E de longe em longe,
um carro atravessa a rua.

É Verão, lá fora
faz um calor infernal.

O tempo parou.
Vou fechar os olhos,
vou ficar por aqui.

PARA A L. P.

Não eram para ti
essas palavras perdidas
no fundo do
desespero.

Pareciam automóveis que se
estampavam contra
a noite.

Um eco de sons precipitados
no óleo derramado
pelo chão.

Um grito de
angústia e solidão.

Não eram para ti
essas palavras de estertor.

As conversas tolas,
o raciocínio cambaleante,
apenas confirmavam o vazio
da tua ausência.

PARA A L. P.

Estes terrenos bravios
que procurei pela manhã,
as tocas perdidas junto
a rochas sem nome,
e o céu azul,
como sempre.

Noites de vela acesa,
a mesa tosca de pinho,
e o ar desfeito do tempo,
em volta.

Foi a uma estação assim
que sobrevivi.

O doce sorriso dos dias.
Quem foi,
que não viu?

terça-feira, 4 de agosto de 2009

PARA A L. P.

Toda a noite
os pequenos pontos luminosos
assinalavam a presença
de bóias
e a água rodopiava entre as rochas,
com um som de cascata.

Empoleirados nas escarpas,
as lanternas acesas,
pescavam carapaus em silêncio,
arriscando a vida
a cada momento.

Partiram de manhã cedo,
depois de lançado o último isco,
deixando para trás o burburinho da água,
e a sua cor de pastis.

Ficámos então só nós dois,
a janela aberta,
o dia a chegar.

Tão juntos como se quiséssemos,
em simultâneo,
transpor as portas do paraíso,
para lá morar.

Ainda hoje aí estaremos,
para quem for olhar.

PARA A L. P.

Viajámos depois para Sul,
deixando para trás as penínsulas mais ocidentais,
o pôr-do-sol nos areais,
luzinhas acesas ao fundo,
e as noites de chuva fria.

Nunca mais veremos a criança
que nos acenou algures, o capuz posto,
o cãozito ao colo.

Fechámos as portas como quem
se despede do passado,
e tudo ficou arrumado e limpo,
como se não tivéssemos sido nós
a estar ali.

Identificariam, é certo, o nosso rasto
para uma qualquer investigação pericial.
Mas quem o faria?
Quem o faria por nós?

Nunca mais
outros dias assim.
Apenas esses lugares permanecerão,
mudando lentamente,
na nossa memória.

PARA A L. P.

Lembras-me a areia branca
e a brisa fresca sobre o mar.
Lembras-me o voo lento
das gaivotas
e as cores,
o amarelo e o azul,
mais suaves.

E não sabes.
Tudo em ti é a beleza
mais pura.
Tudo em ti me
lembra
que a verdade existe
e tu és a sua perfeição.

PARA A L. P.

Quando penso em ti,
sinto o coração ser fustigado
pelos ventos polares
e o eco longínquo
dos balidos de alces.

É uma paisagem invisível
a tua figura,
envolta na neblina dos bosques,
que me aquece o sangue.

E o meu sonho
traz-me o contorno inóspito
dos castelos perdidos da Baviera.

Amo-te assim tão suavemente,
como os barquinhos de pescadores asiáticos
que balançam na cinza fria
do Árctico,
ao amanhecer.

E o futuro, que só agora começou...

Recordas-te da cidade onde nasceste,
a poalha fresca nas ravinas e nas falésias sobre o mar,
a atmosfera tão densa dos campos e da terra,
numa combustão de cores,
que nesse tempo ainda desconhecias.

Esse espaço foi-te tirado depois,
pura e simplesmente.

Ainda te penduravas nos ombros,
como fazem os gatos,
quando, de cócoras, descansam.

As crianças, quando riem e brincam, são como
as da tua infância distante.

O silêncio
ainda hoje te inquieta.

E a passagem do tempo,
tão pertinente sempre.

Havia doces na tua infância,
a "pequenada" toda devorava-os.

E havia esse mar imenso,
que afluia ferozmente contra a costa imensa,
como uma iniciação.

Sábado, 29 de Outubro de 2005

O lago é pequeno e fechado.
Parece uma cicatriz no meio da paisagem.
Está cheio de lodo e sujidade.
É um charco autêntico.
Habitam-no os insectos e as rãs.
As crianças atiram paus e pedras.
Moram na urbanização que construíram
perto das suas margens.
O lago tem os olhos fechados.
Há muito que não faz
senão dormir.

27 de Outubro de 2005

O dia assim é tão feio e triste.
Devia ser antes
vazio e branco
como uma gota da chuva
que cai.

Asfixia-me o céu,
de tão saturado.

As luzes acesas do carro
não deixam ver o caminho.

Ouço na rádio que lavra
um incêndio em Seia,
desde a madrugada.

Na escola o meu nome não está
na lista negra
das faltas.

Bernardo Soares, O Livro do Desassossego, vol.2, p.177, Ática, 1982

"Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-ha a porta do fundo, e tudo o que fomos- lixo de estrellas e de almas- será varrido para fóra da casa, para que o que há recomece."

O Meu Filho

O meu filho,
no meio dos carros.
Um pinguim de polies-
tireno a fazer-lhe
a continência.

E eu
um dia também,
na manhã fresca.

16 de Outubro de 2003

A gaivota sabe que a água devolverá o pedaço de peixe à praia.

O Famoso Caderno

Yes, she`s a lady dot com é um blogue de registos vários; anotações, transcrições, diário, epístolas, prosa, poesia...
Rascunhos e alguns esquiços.
Odes?
Parábolas?
Elegias...
Canções...