segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Diário. ( Domingo. 29.XI.09 )

O gato mistura-se com as tintas, preparadas para o retrato inacabado de Dante Alighieri.
Enquanto dormito no sofá, passo em revista as composições de David Cunningham, " Low Sun ", " Only Shadows ", de " Water ", Vol. 31 de Made To Measure.

Os pingos metálicos da chuva contra os estores da sala vêm misturar-se,
cinematograficamente,
com os sons das peças de música.

Nenhuma cabala se vislumbra
na confecção simples de umas espetadas grelhadas, para acompanhar um arroz de manteiga, ao jantar.

Caiu a noite, indelével,
e lá vamos nós, em trânsito, no baloiço da Vida.

Falei contigo há pouco pelo telemóvel,
eram dezanove horas e trinta e quatro.

Sonho.

A oito mil pés de altitude
sobre a extensão cinzenta das nuvens,
uma estranha solidão me absorve.

Ao meu lado, porém,
o figurino cromático
da tua presença.

Azul, verde e negro
de azeviche.

És tu.
Tu
e esse teu discreto
perfume francês.

Pela vigia de bordo,
numa lenta ilusão de movimento,
assisto à combustão contínua
de relâmpagos,
que me ferem os olhos.

E um pássaro,
inesperadamente,
vem pousar na lapela azul
do teu casaco.

sábado, 28 de novembro de 2009

Sábado de Manhã.

Tomo um café fumegante
e fresco ao Sábado de manhã,
com todo o vagar de quem
não tem nada que fazer.

Sinto o mesmo sossego
monótono dos sons
que sobem da rua.

E não penso.
Nem sinto.

Como são belos, por vezes,
os versos que nos revelam
ter pouco para dizer...

Testemunho, tão só, de uma voz
que ainda não se silenciou.

E de uma manhã
saturada pelo aroma quente
de uma chávena de café.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Philophobia. ( Arab Strap )

Hoje foi um dia sem graça,
o nevoeiro de manhã
e a chuva depois, todo o dia.

Sinais desse menino de Augusto Gil
arrastando os pezinhos na neve.

Um recolhimento franciscano,
sem interesse, no sofá da sala.

O gato enrolado e a humidade
fria, que não se dissipa.

Nenhum escrúpulo.
Apenas o silêncio.
Vazio.


( CHEM21CD. PHILOPHOBIA BY ARAB STRAP. / C & P 1998 CHEMICAL UNDERGROUND RECORDS. )

domingo, 22 de novembro de 2009

Amor Bonito. ( Para Ti )

A Flora que vês neste medalhão,
enquadra o teu rosto
numa serenidade luminosa.

É um bosque natural
bordado de verde e cinza
e ao centro,
os teus olhos repousam cintilantes,
como se fossem maquilhados
pela própria Via Láctea.

As aves vêm acordar o bosque
com os seus trinados finos.

E são as tuas pálpebras,
de tão vivas,
que acendem no meu coração
o fogo deste amor,
que eu sinto por ti.

sábado, 21 de novembro de 2009

20 de Novembro. ( Para a L. P. )

Ficou tanto por dizer.

Não te contei que o céu
já era estrelado, antes daquela luzinha
lá ao alto...
Ou que são os sinos que ainda acordam,
nos vales, a letargia
cinzenta das aldeias...

Ou deste gato azul,
meu amor,
ouves?,
ronronando para ti...

Ficou tanto por fazer...

Os passeios de eléctrico
atravessando o Chiado à tarde...

Um chá de menta e chocolate
e um prato de scones ao lanche.

Lá fora, o frio do Outono
e as iluminações que já anunciam
a Quadra Natalícia...

E depois, meu amor,
as sapatarias que não fomos
espreitar,
e os grandes armazéns,
ainda há grandes armazéns
no Chiado?...
Ainda, amor?...

E por esquecer,
amor,
o que ficou?

Queres que diga agora,
ou preferes,
olhar lá ao fundo o rio
e como ondula suave,
pela tarde?

E o Tempo, amor,
será que há ainda Tempo
para nós?

Dois bilhetes de cinema
para uma sessão às sete?...

Ouves?...

Eu amo-te,
meu amor...

Chaval. ( Alexandre O`Neill )

Entre o Bem e o Mal,
cresce a borbulha na cara do chaval.

O chaval ainda não sabe
que a barba, bem ou mal
feita, é uma banalidade
matinal.


Alexandre O`Neill, Poesias Completas, De Ombro na Ombreira, Assírio e Alvim, 3ª Edição, Outubro 2002, pág. 272.

domingo, 15 de novembro de 2009

Pela Noite Fora. ( Para a L. P. )

É muito tarde e eu
vou acompanhar-te a casa,
no meu automóvel.

A 2ª Circular à noite,
de madrugada,
e nós dois a deslizar.

O piso molhado
e o limite de velocidade
levam-nos a rolar devagar.

Conduzes com cuidado
atrás de mim,
e lá vamos nós a planar.

Este dia chegou ao fim,
mas temos ainda
todo o tempo do Mundo
para guiar
e deslizar
e planar
devagar...

Wuthering Heights.

Já não me lembro bem
do Fox Terrier que tive
na minha infância.

O Buick que levava
para a pista de giz
no jardim de casa
e o rosto da Laurinda,
oh, a Laurinda, na 2ª classe!...

Não me lembro da véspera
de um exame, ou da noite
anterior a todas as viagens.

Nem de mais nenhum rosto,
o rosto de quem?

O Tempo passa e apaga
as lembranças da Vida.

Vou reler O Monte Dos Vendavais,
de Emily Bronte,
de que mal me recordo, também.

Apenas que é tão áspero e seco,
mas transbordante
de bondade...


( Novamente a falta de trema no nome da autora... )

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Nitrato de Prata.

Uma linha leve
sublinha
o horizonte.

E tu,
tão ténue
já.

Uma mancha
vai clareando
o horizonte.

Para sempre.

E tu,
tão distante
agora.

Tão longe
daqui.

Desta folha
amarelecida
de papel.

Manhã.

A luz da manhã,
outra vez.

As estrias de sombra
dos estores.

E eu,
só.

Eu só,
sem versos.

Deixando
o tempo,
de tão longínquo,
ser de versos.

O tempo único
duma nota musical,
pela manhã.

Como quem sabe
que esquece.

As Castanhas. ( Para a L. P. )

Castanhas!...

Cheiram e sabem
a bosques e ao Outono
e o fumo no nariz
é tão farrusco...

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A Árvore. HOLDERLIN. ( Planos e Fragmentos )

Quando menino, tímido te plantei


Bela planta!, quão diferentes nos vemos
Magnífica estás e


como um menino.



( Holderlin, Poemas, prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, 2ª edição revista e muito ampliada. Atlântida Coimbra MCMLIX, pág.481. )

Nota: A falta do trema em Holderlin é por inexistência no teclado.

domingo, 8 de novembro de 2009

O Telefone. ( Para a L. P. )

Vou dizer-te ao telefone
que me sinto muito feliz.

Sopa de tomate e ovo cozido
e pescada em gratinado de natas
com batatinhas cozidas.

Vou já dizer-te ao telefone,
meu amor,
que eu sou muito feliz.

Uma bola de gelado de limão,
ou um café e um duchesse
tomados contigo na esplanada.

Vou agora ao telefone,
meu amor,
deixa-me contar-te
porque sou tão feliz.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Aquário. ( Para a L. P. )

O Peixe-Vampiro,
o Peixe-Dragão e o
Balão e o Palhaço...

A Anémona,
o Peixe-Picasso
e os olhinhos tímidos
do Anjo...

Solidão Urbana.

O silêncio imperativo da noite.
Mesmo se ao longe cintilem as luzes na estrada,
ou passem carros com os seus brilhos amarelos e vermelhos.

Ou no interior dourado dos salões
as mulheres disponham com zelo
os pratos sobre as toalhas de linho.

Nas tabernas, o silêncio.
Estalam depois os gritos de trolhas
que falam e gesticulam, bêbados.
E os velhos,
que sorriem escavacados...

Nem Maldoror sobreviveria a tamanha,
imperturbável confusão.

O mudo silêncio dos contadores de estórias,
dos sonhadores e dos alucinados.

Nem o prolongado eco estelar romperia o puro,
opaco, vazio do silêncio.
Nenhum rosto o transformaria.
Nem que batessem asas os pássaros
em debandada.

Romantismo.

Também Catarina deixou
de amar Grigory Orlov.

E Potemkin e Catarina
foram só dois amantes mais.

António e Cleópatra,
Josefina e Napoleão.

Depois,
o que importam?

O que será melhor realmente,
as batalhas,
ou o turbilhão das guerras?...

O Meu Mar É Castanho Como A Minha Terra.

O meu mar é castanho como a minha terra.
O galope das naus nas ondas do mar.
Ilhas, de que fortuna?
Todas são desespero.
Todas são loucura, sangue seco.

Deslizam as quilhas pelas ravinas húmidas.
São as aranhas que sobrevivem, seja onde for.
A vida passada a dormir dos gatos domésticos.

Uma capa sombria, capa negra de corvo.
O corvo que habita as falésias sobre o mar.

Algures, comem pastéis de Sintra, a boca suja do açúcar.
E os loucos caem na relva dos jardins
regurgitando a espuma de vinhos adulterados.

Este aqui tem as barbas de um almirante.
A sua armada anda há muito perdida na Australásia.
E a garupa mais se assemelha a um ninho de vespas.

O Meu Mar É Castanho Como A Minha Terra.

Herói Romântico.

Nunca o abismo profundo
apagou o sofrimento
ao herói romântico.

Nem as paredes aprisionaram
a sua errância desesperada.

O futuro sonâmbulo
dilui-se em penumbra
e a aurora que aí vem
gela o seu coração despedaçado.

Nem os vultos sombrios das carpias
que esvoaçam loucas
o serenaram.

Ou a brancura imparável das luzes
do esquecimento.

O fim da história
é essa sinistra figura que definha
na luz intemporal do dia seguinte.

domingo, 1 de novembro de 2009

O coração calou António Sérgio. ( 1.XI.2009 )

A noite dita por essa voz
grave
e repousante,

sempre à frente dos sons
com que se confundia...

Foi um prazer,
António.
O meu obrigado.