sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Campo de Flores, de João de Deus.

DEDICAÇÃO
A António Nobre

Porque é tão alegre a carta
Que acabas de me escrever?
Tens tu já a alma farta
De suspirar e gemer?...

É que quando nos devora
Uma entranhável paixão,
Soffra a gente muito embora,
Mas a prenda amada não!

Eu sei, sei que tu me escondes
As tuas lágrimas, sei;
E é assim que correspondes
Ao conceito que formei:

Que não há anjos dotados
De uma indole melhor;
E que esses olhos rasgados
Encobrem-me só a dor!

Viu um dia um viajante,
Escriptor de toda a fé,
Em Africa uma elephante
Vir mais um filhinho ao pé;

Os indigenas começam
A atirar-lhes; porém,
Quantas settas arremessam
Todas se cravam na mãe;

Porque mettendo-se a pobre
Entre o filho e o gentio,
De tal maneira o encobre,
Que elle nenhuma o feriu;

E ella andando mansamente
Lambendo-o, para mostrar
Que não vê, não ouve ou sente
Cousa alguma de espantar,

O consegue pôr a salvo,
Com toda a satisfação
De ter sido só o alvo
Dos tiros da multidão!

Ha no mundo acaso indício
De dedicação maior,
Prova, extremo, sacrificio
De mais verdadeiro amor?...

Tu és como a elephante
D´esta anecdota exemplar...
( Se bem que a mais rara amante
Não passa da mãe vulgar! )

Ir exhalar um gemido,
Reprimil-o dentro em nós,
Por que o não oiça um ouvido
A quem magôa essa voz:

Dizer, n´uma dor immensa,
Tem-te! á lagrima que está
De uma palpebra suspensa
A desprender-se-nos já,

É de um amor verdadeiro,
É de um infinito amor!
E por isso te amo e quero
Infinitamente, flor!

João de Deus, Campo de Flores, Livraria Bertrand, 9ª edição, s/ data, pp.180, 181 e 182.

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