sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Eugénio de Andrade, O Peso da Sombra, Obras de Eugénio de Andrade/16, Limiar, 3ª Edição, 1989

p.54

Nem sempre o corpo se parece com
um bosque, nem sempre o sol
atravessa o vidro,
ou um melro canta na neve.
Há um modo de olhar vindo
do deserto,
mirrado sopro de folhas,
de lábios, digo.

p.63

Não oiças essas vozes que não param
de crescer a caminho do inverno,
os lugares onde o corpo de erro
em erro abdica de ser corpo
são mortais, não oiças essas vozes
onde o sol apodrece, nunca mais.

p.66

Passaste os dias a pôr sílabas
sobre sílabas, dorme, estás cansado.
Não são do rio essas luzes,
dorme, já não há rios.
Nos pátios do outono a noite
já soltou os seus cães, dorme.

p.69

Oiço correr a noite pelos sulcos
do rosto - dir-se-ia que me chama,
que subitamente me acaricia,
a mim, que nem sequer sei ainda
como juntar as sílabas do silêncio
e sobre elas adormecer.

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