terça-feira, 8 de setembro de 2009

Conto. ( Homenagem a Franz Kafka ) Março de 1998

( Foram tempos difíceis, 1997/1998. Mas também foram tempos que já lá vão. Termino com a transcrição deste Conto dedicado a Kafka e a satisfação de viver outra vida, noutro século. Je est un autre, eterno Rimbaud. )


CONTO
Insectos que rastejam, que se dispersam entre as árvores e se lançam pelas clareiras em busca de alimento e se alimentam do sangue de animais mamíferos, de vacas, do nosso sangue.
Insectos que voam, que se espalham pelo ar, em volta das árvores, que se soltam pelas clareiras, perseguindo talvez o sangue que os alimenta e nem sei como o detectam.
Insectos que pousam na água das nascentes, insectos que o Verão gerou e que, de forma sibilante, tudo perseguem, as fezes das vacas, o cheiro transpirado dos corpos, a pele porosa e desprotegida dos nossos corpos.
São esses insectos que nos perseguem, quando atravessamos os campos e as estradas em busca de cidades, que sonhamos realizarem os nossos devaneios mais inocentes.
São os mesmos insectos que perseguindo os nossos passos erráticos, o fizeram também a Verlaine e Rimbaud, saindo da Normandia a caminho da Bélgica, ou ainda Apollinaire, quando chegava a Colónia ou a Munique.
Os insectos que Serpa Pinto passava as noites a tentar eliminar, quando pernoitava em cubatas que lhe iam cedendo na sua itinerância pelas margens do rio Zambeze, como nos conta em Como Eu Atravessei a África.
Sem ser exaustivo, refiro as aranhas e os escaravelhos, que simbolicamente tanto de bom representavam entre os egípcios do tempo dos faraós, como aquele enorme insecto que descobrimos na Metamorfose de Kafka, o insecto da culpa duma vida mesquinha, e nesses opostos encontramos justificação para a nossa náusea, para a enorme repugnância que sentimos na monotonia das grandes metrópoles, quando nos deparamos inadvertidamente com esses repugnantes seres.
E é então que damos uma luta sem tréguas às baratas, às traças, às formigas, que irrompem do mais fundo dos armários, pelas roupas que guardamos, ou nos alimentos que temos em dispensas e cozinhas, nas prateleiras, sobre as mesas.
Não viveremos jamais sem insectos. Vão mesmo resistir-nos no Tempo.
Chicago para os ácaros, a Holanda dos pulgões!
São pois os insectos, um capítulo de mineralogia viva, seres abjectos que nos estimulam a imaginação, como talvez se leia em Luciano, bichos gigantes que a micro-engenharia fotográfica desvenda para nosso horror e de que hoje tanto sabemos sobre a sua voragem, a sua força hercúlea, ou a horda cega para salvar uma única rainha geradora.
Habitam os formigueiros, ou os cortiços, dentro do tronco das árvores, na madeira dos armários, nas escadas, nas torres de térmitas, galerias, túneis e reproduzem-se incessantemente, os malvados!
Fascínio neo-gongórico, sei bem, decadentismo serôdio que faz eleger os insectos, apóstolos do comportamento!
Peter Gabriel tão fantástico num jardim de caracóis!
Alice no País das Maravilhas!
Hoje é possível ler obras que explicam os insectos com todo o pormenor romanesco.
Serão úteis cientificamente...
Que importa?!...
Este conto é sobre os insectos que atravessam os campos, que sobrevoam a água, sempre presentes na vida dos mais livres, como em Walt Whitman.
Insectos que proliferam nos tapetes, dentro das gavetas, no fundo de sacos, no interior de elecrodomésticos.
Vou usar uma lupa para observar os seus aparelhos bocais, o seu abdómen, ou o modo como as suas asas se ligam ao tronco.
Vou revê-los em emblemas e em bandeiras.
Vou relê-los na imaginação de pacientes.
Na verdade, não queremos desfazer-nos deles.
Eu não imagino o Mundo sem insectos.
Nem a Morte.
Merecem bem um poema.
Ou um conto.

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