segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

OS COMBOIOS QUE VÂO PARA ANTUÉRPIA. ( Herberto Helder )

Em janeiro eu estava em Bruxelas, nos arredores, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Passara o natal. Alguma coisa desaparecera, alguma coisa importante em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro, nem livros, nem cigarros. Não tinha trabalho, nem ócio, porque estava desesperado. Por isso, passava o dia e a noite no meu quarto. Sobre a linha ao lado, em baixo, rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava em Deus, quando os comboios trepidavam nos carris, e quando apitavam tão perto de mim. Quando iam possìvelmente a caminho de Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa em Deus- com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus, um comboio- algo que existe, não há dúvida, mas algo absurdo, uma coisa que parte com um destino confuso que pode ser Antuérpia, que possìvelmente ( evidentemente ) não era.
Às vezes vinha à janela e, por detrás dos vidros, olhava para o caminho de ferro. No entanto, antes de lá chegar, o meu olhar encontrava uma árvore esquisita que vivia em baixo num pequeno quintal burguês. Esta árvore metia-me medo como uma esperança em mim próprio, até como uma esperança mais vasta no destino dos homens. Dos homens? Há em mim a qualidade da confiança, mas sou um desesperado. Sinto-me, contudo, um homem. Possuo a propriedade do amor. Amo a minha semelhança com todos os homens, mas desespero junto desse mesmo amor. Estou fechado num quarto. Nem posso fumar. Não posso descansar. Imagino que é possível partir de Antuérpia, depois de lá ter chegado num desses comboios rangentes. Porém, Antuérpia não é um ponto de chegada. É uma cidade como as outras: com bares e nevoeiro, o silêncio das coisas, as pessoas, a matemática impenetrável das suas multiplicações e desmultiplicações, e com a música dos minutos que se corrompem. Em Antuérpia há prostitutas, há um calor humano degradado, e a embriaguez. Lá também se morre. Talvez alguém um dia tenha ressuscitado em Antuérpia. Não sei.
O lugar em que penso é difícil, sempre difícil.
(...)

Herberto Helder, Os Passos em Volta, OS COMBOIOS QUE VÃO PARA ANTUÉRPIA, Editorial Estampa, 3ª Edição, 1970, pp. 47, 48.

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