segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Tripalium.

Não sei se é por maldade
esta desconfiança,
o atropelo das causas,
o que me parece mesmo
risível,
o tel quel francês.

Contra a infância,
ajo tantas vezes...

O amargo sabor
de batalhas inúteis.
Uma guerra absurda.
A Morte que vence
palmo a palmo,
segundo a segundo.

O carro que transporta
já vem carregado de ossadas.
E, pelo caminho,
milhares de espectros
vão tombando.

OS COMBOIOS QUE VÂO PARA ANTUÉRPIA. ( Herberto Helder )

Em janeiro eu estava em Bruxelas, nos arredores, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Passara o natal. Alguma coisa desaparecera, alguma coisa importante em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro, nem livros, nem cigarros. Não tinha trabalho, nem ócio, porque estava desesperado. Por isso, passava o dia e a noite no meu quarto. Sobre a linha ao lado, em baixo, rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava em Deus, quando os comboios trepidavam nos carris, e quando apitavam tão perto de mim. Quando iam possìvelmente a caminho de Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa em Deus- com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus, um comboio- algo que existe, não há dúvida, mas algo absurdo, uma coisa que parte com um destino confuso que pode ser Antuérpia, que possìvelmente ( evidentemente ) não era.
Às vezes vinha à janela e, por detrás dos vidros, olhava para o caminho de ferro. No entanto, antes de lá chegar, o meu olhar encontrava uma árvore esquisita que vivia em baixo num pequeno quintal burguês. Esta árvore metia-me medo como uma esperança em mim próprio, até como uma esperança mais vasta no destino dos homens. Dos homens? Há em mim a qualidade da confiança, mas sou um desesperado. Sinto-me, contudo, um homem. Possuo a propriedade do amor. Amo a minha semelhança com todos os homens, mas desespero junto desse mesmo amor. Estou fechado num quarto. Nem posso fumar. Não posso descansar. Imagino que é possível partir de Antuérpia, depois de lá ter chegado num desses comboios rangentes. Porém, Antuérpia não é um ponto de chegada. É uma cidade como as outras: com bares e nevoeiro, o silêncio das coisas, as pessoas, a matemática impenetrável das suas multiplicações e desmultiplicações, e com a música dos minutos que se corrompem. Em Antuérpia há prostitutas, há um calor humano degradado, e a embriaguez. Lá também se morre. Talvez alguém um dia tenha ressuscitado em Antuérpia. Não sei.
O lugar em que penso é difícil, sempre difícil.
(...)

Herberto Helder, Os Passos em Volta, OS COMBOIOS QUE VÃO PARA ANTUÉRPIA, Editorial Estampa, 3ª Edição, 1970, pp. 47, 48.

domingo, 20 de dezembro de 2009

O Entardecer. ( Para a L. P. )

Acendo o fogo na areia,
as chamas desenham
o contorno sensual
de um corpo nu.

Tu estás reclinada
num sofá de palha,
o vestido leve,
o azul marinho das
missangas das sandálias
e a pele hidratada
com suavidade
em tons de água e ouro.

Descubro nas pequenas labaredas
um aroma antigo de crustáceos
grelhados e de moluscos secos.

Um ardor masculino
aquece-me a alma
e sobe do fundo dos tempos
para me oferecer
o mais puro amor.

Tu, dormitando,
não dás por nada
e o lume crepita
em línguas finas,
vagarosas.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

PARA A L.P. ( Diário-19.XI.2007 )

Gostei dos tons de prata
que trazias ontem.

Vão acender-se as luzes,
vai chegar o Natal.

Sininho de Natal. ( Para a L. P. )

Os sons,
as cores,
os aromas
e os sabores
deste Natal

são para ti.

O Bairro.

Quase ninguém.

Primeiro,
pago a gasolina
antes de abastecer.

Depois,
estaciono o carro
nas trazeiras da
Caixa Geral de Depósitos,
em Benfica.

Levanto dinheiro,
compro jornais e pão,
bebo um café.

Ainda passo pelo
Modelo Bonjour,
cerveja, água.

Regresso a casa
com a angústia
de não ter estado
com ninguém.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Natal.

Fitas coloridas de luz,
desenham sinos e
estrelas
e pulsam na noite
fria de Dezembro.

Ameixas em calda
e sonhos de açúcar.
Um cálice de Porto,
Reserva, sem preço...

Um olhar doce de
azevinho e agulhas
de pinheiro.

E o ambiente triste,
triste,
das figurinhas
do Presépio.

Vamos decorar a mesa
com sobriedade.

E relembrar o cheiro a musgo
e papel machê
da nossa infância,
infância.

Hiii...
É Natal, outra vez,
outra vez,
é Natal!...

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Diário. ( Domingo. 29.XI.09 )

O gato mistura-se com as tintas, preparadas para o retrato inacabado de Dante Alighieri.
Enquanto dormito no sofá, passo em revista as composições de David Cunningham, " Low Sun ", " Only Shadows ", de " Water ", Vol. 31 de Made To Measure.

Os pingos metálicos da chuva contra os estores da sala vêm misturar-se,
cinematograficamente,
com os sons das peças de música.

Nenhuma cabala se vislumbra
na confecção simples de umas espetadas grelhadas, para acompanhar um arroz de manteiga, ao jantar.

Caiu a noite, indelével,
e lá vamos nós, em trânsito, no baloiço da Vida.

Falei contigo há pouco pelo telemóvel,
eram dezanove horas e trinta e quatro.

Sonho.

A oito mil pés de altitude
sobre a extensão cinzenta das nuvens,
uma estranha solidão me absorve.

Ao meu lado, porém,
o figurino cromático
da tua presença.

Azul, verde e negro
de azeviche.

És tu.
Tu
e esse teu discreto
perfume francês.

Pela vigia de bordo,
numa lenta ilusão de movimento,
assisto à combustão contínua
de relâmpagos,
que me ferem os olhos.

E um pássaro,
inesperadamente,
vem pousar na lapela azul
do teu casaco.

sábado, 28 de novembro de 2009

Sábado de Manhã.

Tomo um café fumegante
e fresco ao Sábado de manhã,
com todo o vagar de quem
não tem nada que fazer.

Sinto o mesmo sossego
monótono dos sons
que sobem da rua.

E não penso.
Nem sinto.

Como são belos, por vezes,
os versos que nos revelam
ter pouco para dizer...

Testemunho, tão só, de uma voz
que ainda não se silenciou.

E de uma manhã
saturada pelo aroma quente
de uma chávena de café.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Philophobia. ( Arab Strap )

Hoje foi um dia sem graça,
o nevoeiro de manhã
e a chuva depois, todo o dia.

Sinais desse menino de Augusto Gil
arrastando os pezinhos na neve.

Um recolhimento franciscano,
sem interesse, no sofá da sala.

O gato enrolado e a humidade
fria, que não se dissipa.

Nenhum escrúpulo.
Apenas o silêncio.
Vazio.


( CHEM21CD. PHILOPHOBIA BY ARAB STRAP. / C & P 1998 CHEMICAL UNDERGROUND RECORDS. )

domingo, 22 de novembro de 2009

Amor Bonito. ( Para Ti )

A Flora que vês neste medalhão,
enquadra o teu rosto
numa serenidade luminosa.

É um bosque natural
bordado de verde e cinza
e ao centro,
os teus olhos repousam cintilantes,
como se fossem maquilhados
pela própria Via Láctea.

As aves vêm acordar o bosque
com os seus trinados finos.

E são as tuas pálpebras,
de tão vivas,
que acendem no meu coração
o fogo deste amor,
que eu sinto por ti.

sábado, 21 de novembro de 2009

20 de Novembro. ( Para a L. P. )

Ficou tanto por dizer.

Não te contei que o céu
já era estrelado, antes daquela luzinha
lá ao alto...
Ou que são os sinos que ainda acordam,
nos vales, a letargia
cinzenta das aldeias...

Ou deste gato azul,
meu amor,
ouves?,
ronronando para ti...

Ficou tanto por fazer...

Os passeios de eléctrico
atravessando o Chiado à tarde...

Um chá de menta e chocolate
e um prato de scones ao lanche.

Lá fora, o frio do Outono
e as iluminações que já anunciam
a Quadra Natalícia...

E depois, meu amor,
as sapatarias que não fomos
espreitar,
e os grandes armazéns,
ainda há grandes armazéns
no Chiado?...
Ainda, amor?...

E por esquecer,
amor,
o que ficou?

Queres que diga agora,
ou preferes,
olhar lá ao fundo o rio
e como ondula suave,
pela tarde?

E o Tempo, amor,
será que há ainda Tempo
para nós?

Dois bilhetes de cinema
para uma sessão às sete?...

Ouves?...

Eu amo-te,
meu amor...

Chaval. ( Alexandre O`Neill )

Entre o Bem e o Mal,
cresce a borbulha na cara do chaval.

O chaval ainda não sabe
que a barba, bem ou mal
feita, é uma banalidade
matinal.


Alexandre O`Neill, Poesias Completas, De Ombro na Ombreira, Assírio e Alvim, 3ª Edição, Outubro 2002, pág. 272.

domingo, 15 de novembro de 2009

Pela Noite Fora. ( Para a L. P. )

É muito tarde e eu
vou acompanhar-te a casa,
no meu automóvel.

A 2ª Circular à noite,
de madrugada,
e nós dois a deslizar.

O piso molhado
e o limite de velocidade
levam-nos a rolar devagar.

Conduzes com cuidado
atrás de mim,
e lá vamos nós a planar.

Este dia chegou ao fim,
mas temos ainda
todo o tempo do Mundo
para guiar
e deslizar
e planar
devagar...

Wuthering Heights.

Já não me lembro bem
do Fox Terrier que tive
na minha infância.

O Buick que levava
para a pista de giz
no jardim de casa
e o rosto da Laurinda,
oh, a Laurinda, na 2ª classe!...

Não me lembro da véspera
de um exame, ou da noite
anterior a todas as viagens.

Nem de mais nenhum rosto,
o rosto de quem?

O Tempo passa e apaga
as lembranças da Vida.

Vou reler O Monte Dos Vendavais,
de Emily Bronte,
de que mal me recordo, também.

Apenas que é tão áspero e seco,
mas transbordante
de bondade...


( Novamente a falta de trema no nome da autora... )

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Nitrato de Prata.

Uma linha leve
sublinha
o horizonte.

E tu,
tão ténue
já.

Uma mancha
vai clareando
o horizonte.

Para sempre.

E tu,
tão distante
agora.

Tão longe
daqui.

Desta folha
amarelecida
de papel.

Manhã.

A luz da manhã,
outra vez.

As estrias de sombra
dos estores.

E eu,
só.

Eu só,
sem versos.

Deixando
o tempo,
de tão longínquo,
ser de versos.

O tempo único
duma nota musical,
pela manhã.

Como quem sabe
que esquece.

As Castanhas. ( Para a L. P. )

Castanhas!...

Cheiram e sabem
a bosques e ao Outono
e o fumo no nariz
é tão farrusco...

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A Árvore. HOLDERLIN. ( Planos e Fragmentos )

Quando menino, tímido te plantei


Bela planta!, quão diferentes nos vemos
Magnífica estás e


como um menino.



( Holderlin, Poemas, prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, 2ª edição revista e muito ampliada. Atlântida Coimbra MCMLIX, pág.481. )

Nota: A falta do trema em Holderlin é por inexistência no teclado.

domingo, 8 de novembro de 2009

O Telefone. ( Para a L. P. )

Vou dizer-te ao telefone
que me sinto muito feliz.

Sopa de tomate e ovo cozido
e pescada em gratinado de natas
com batatinhas cozidas.

Vou já dizer-te ao telefone,
meu amor,
que eu sou muito feliz.

Uma bola de gelado de limão,
ou um café e um duchesse
tomados contigo na esplanada.

Vou agora ao telefone,
meu amor,
deixa-me contar-te
porque sou tão feliz.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Aquário. ( Para a L. P. )

O Peixe-Vampiro,
o Peixe-Dragão e o
Balão e o Palhaço...

A Anémona,
o Peixe-Picasso
e os olhinhos tímidos
do Anjo...

Solidão Urbana.

O silêncio imperativo da noite.
Mesmo se ao longe cintilem as luzes na estrada,
ou passem carros com os seus brilhos amarelos e vermelhos.

Ou no interior dourado dos salões
as mulheres disponham com zelo
os pratos sobre as toalhas de linho.

Nas tabernas, o silêncio.
Estalam depois os gritos de trolhas
que falam e gesticulam, bêbados.
E os velhos,
que sorriem escavacados...

Nem Maldoror sobreviveria a tamanha,
imperturbável confusão.

O mudo silêncio dos contadores de estórias,
dos sonhadores e dos alucinados.

Nem o prolongado eco estelar romperia o puro,
opaco, vazio do silêncio.
Nenhum rosto o transformaria.
Nem que batessem asas os pássaros
em debandada.

Romantismo.

Também Catarina deixou
de amar Grigory Orlov.

E Potemkin e Catarina
foram só dois amantes mais.

António e Cleópatra,
Josefina e Napoleão.

Depois,
o que importam?

O que será melhor realmente,
as batalhas,
ou o turbilhão das guerras?...

O Meu Mar É Castanho Como A Minha Terra.

O meu mar é castanho como a minha terra.
O galope das naus nas ondas do mar.
Ilhas, de que fortuna?
Todas são desespero.
Todas são loucura, sangue seco.

Deslizam as quilhas pelas ravinas húmidas.
São as aranhas que sobrevivem, seja onde for.
A vida passada a dormir dos gatos domésticos.

Uma capa sombria, capa negra de corvo.
O corvo que habita as falésias sobre o mar.

Algures, comem pastéis de Sintra, a boca suja do açúcar.
E os loucos caem na relva dos jardins
regurgitando a espuma de vinhos adulterados.

Este aqui tem as barbas de um almirante.
A sua armada anda há muito perdida na Australásia.
E a garupa mais se assemelha a um ninho de vespas.

O Meu Mar É Castanho Como A Minha Terra.

Herói Romântico.

Nunca o abismo profundo
apagou o sofrimento
ao herói romântico.

Nem as paredes aprisionaram
a sua errância desesperada.

O futuro sonâmbulo
dilui-se em penumbra
e a aurora que aí vem
gela o seu coração despedaçado.

Nem os vultos sombrios das carpias
que esvoaçam loucas
o serenaram.

Ou a brancura imparável das luzes
do esquecimento.

O fim da história
é essa sinistra figura que definha
na luz intemporal do dia seguinte.

domingo, 1 de novembro de 2009

O coração calou António Sérgio. ( 1.XI.2009 )

A noite dita por essa voz
grave
e repousante,

sempre à frente dos sons
com que se confundia...

Foi um prazer,
António.
O meu obrigado.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

As Palavras.

O limite das coisas,
o seu contorno rígido,
a cor?

O limite das palavras
é um limite
para as palavras.

Depois,
talvez inventar
a nuvem.
E imaginar
o céu.

E ver
como é bela
a fala,
como evolui
e se estende
nesse outro céu,
que é a boca.

E não haver mais
nenhum limite,
então.

As Palavras.

A Viagem.

Eu e tu,
um dia não muito distante,
melhores dias virão...

Uma tarde, eu e tu,
uma tarde inteira
para nada,
por prazer,
só.

Satisfeitos os que nos
são próximos
e só tu
e eu.

Uma tarde
dessas tardes inteiras,
só por prazer,
por nada mais.

Eu e tu,
só.

A viagem.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

As Nuvens.

As nuvens
que pintam o céu de branco,
formam-se e desfazem-se
num simples piscar de olhos.

Estas não,
de tão baixas e tão ígneas.
Carregam o horizonte
de um cinzento sujo
e, a mim, sufocam-me
de tristeza e de uma angústia
sem nome.

Oh, as nuvens
que são como farrapos brancos,
que surgem e desaparecem
num leve piscar de olhos...

sábado, 24 de outubro de 2009

Fim-de-Semana.

Passaste muito tempo longe,
visitando os mercados pela manhã,
para comprar os legumes e a fruta fresca.

Ias com frequência almoçar
peixe grelhado nas esplanadas
junto ao mar.

Tiveste tanto tempo para isso!...

Não te faltou nunca tempo
para observares a névoa
que tombava das falésias,
ou ver chapinhar os patos
nas margens junto à foz.

Terás notado, no entanto,
como é estranho e mesquinho
o egoísmo mais serôdio?

Tiveste tanto tempo
para compreender a estupidez!
Os excessos e abusos da Vida!

Por isso é que escolhias em silêncio
o tomate, ou procuravas o melhor pão,
nesses mercados abertos
ao Sábado de manhã?

Terias mesmo tempo para o fazer?

Os Pescadores.

Poucas palavras foram ouvidas
no nevoeiro dos mares
da Islândia!

Avisos, chamamentos, só,
uns e outros louvando
a proximidade para se encorajarem
nessa actividade tão perigosa.

Rudes pescadores absortos
na faina impiedosa.

O Mundo também é assim.

Desejos nobres que se confundem
com a banalidade das expressões.

" Atira!..."
" Estás aí?!... "
" À ré!... À ré!... "

Desencontro.

Ao ar livre
na noite escura,
as luzinhas ao longe,
os faróis desligados.

A brisa fresca
dos lábios
e o ardor festivo
dos abraços.

Espero, ao ar livre
na noite escura,
ver apagarem-se uma a uma,
todas as estrelinhas
que há no céu.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Neve.

Caiu a neve na Serra
e, perdido o rasto das cabras,
todo o dia os lobos uivaram.

É grande a agitação na alcateia.
Rixas, correrias, latidos de dor
e o olhar faiscando ódio
dos mais famintos.

Nos vales, apavoram-se as
capoeiras, ao cair da noite.

Todos vivem em sobressalto,
agora que o tempo mudou.

O manto branco cobre
toda a Serra.

Crepitam as lareiras e o fumo
das chaminés confunde-se
com o nevoeiro cerrado.

Agora coabitam os animais
com os rudes montanheiros.

Só os casebres perdidos de xisto
parece que sujam a noite na Serra.

E, inquietação suprema,
toda a noite os lobos uivaram.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

S.M.S. de L. P. recebido no dia 12/10/09, às 16:36:44.

" Quando é que
chega o meu
namorado? "

Talvez um Retrato.

A Lua reflecte-se límpida
nos teus olhos
de noite.

E o teu cabelo é da cor
das folhas das videiras
no Outono.

O sorriso,
arroio leve de água
pura.

Vestem-te
e calçam-te
os figurinos
mais recentes.

Nem saberias ser
de outra forma.

Por isso é que
reparam em ti,
mesmo as raparigas
mais elegantes.

Também por isso és
o orgulho dos que são teus.

A jóia mais valiosa,
porém, tens guardada dentro
do peito.

Toda feita em ouro de lei,
é o teu próprio coração.

domingo, 18 de outubro de 2009

Silêncio.

Não tragas tanta gente
para estes versos.

Já sabes que o Tempo
te sobrevive
sempre.

E o teu silêncio
tem luz.

Solidão.

Percebo claramente,
eu só.
A rega dos jardins,
como se faz.

Diário ( Outubro )

Há um espelho à entrada de casa.
A sua superfície lisa, limpa
e transparente.

No Porto de Luanda,
no cais do Niassa
à noite.
Torneiras abertas para o mar.
Essa paz envolveu-me
para sempre.

A solidão nocturna dos carros do lixo.
Os semáforos com laranja intermitente.
Os homens da Câmara que regam as ruas
de madrugada.
A noite sempre escura, sempre igual.
A triste vida de Lisboa.
E só hoje o escrever.

... e digas quando vens a Portugal.

Depois, tudo se dissipa
nessa nuvem furiosa...

Esta neblina perdida
das tardes de Outubro.
As colinas dos arredores
e os seus buxos e arbustos.
A linha do teu corpo
envolta no azul.

Eu não esqueci nunca
as palmeiras na praia
e a extensão branca da areia.

Não cheguei a adormecer.
Fui sempre
um outro.

O Amor 2. ( Para a L. P. )

O amor é uma rotina
saborosa,
como o lançamento
de foguetões,
também é.

Deslizam os golfinhos
na superfície da água
e o amor estende-se
e eleva-se
como uma asa-delta.

O amor também vive
da ausência
e da separação.

É bom interromper.
O amor, não.

O Fim.

Depois
um pássaro,
um dia,
voando sobre a rua,
voaria só.

Arraia-Miúda. ( Fernão Lopes )

Oh, o povinho das ruas de Lisboa,
do Alto do Pina, ou das
Avenidas Novas!

O povinho das mines
e das camarias,
que trata as miladies por
minha senhora
e lhes arruma os carros
por cinquenta cêntimos!

O povinho que vê na política
a verdadeira roubalheira e prefere
falar do Benfica com o Sr. Engenheiro,
para lhe ensinar os passes de mágica
do Aimar e do Cardozo.

Desce a menina ao café
e cumprimenta o povinho
com um Olé!

E em dias especiais,
lá para as Festas dos Santos,
vão todos juntos a Alfama,
aos arraiais!

Oh, o povinho das ruas,
que é todo tu-cá
com a viúva do Sr. Doutor.

O povinho de Lisboa,
que transpira Liberdade,
Benfica e Igualdade!

Amanhã bem cedo
lá estará aquele na Praceta,
a levar os cigarros ou o jornal
à viúva do Sr. Doutor,
a troco de uma graça
ou por um especial favor.

Oh, as gentes de Lisboa
que mais parecem os pardais
a chilrear pelas ruas
e vem de manhã cedo
fazer o biscate
ao Sr. Neves da Mercearia!...

Paparazzi.

Não viu as palmeiras
abertas em leque,
o seu alfabeto antigo
desenhado numa moldura
azul.

Um muro branco
limitava o seu olhar.

Não viu a água azul
e a relva molhada,
as cadeiras de descanso
abertas e vazias
em redor.

Por isso não viu
se estavas, se ias
essa manhã ao jardim,
para ler ou simplesmente
dormitar.

A varanda da sua casa distante
expunha-o apenas ao azul do céu
e ao silêncio da rua deserta,
alguns metros mais abaixo.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Abandono.

Evapora-se
invisível
como se se esfumasse.

Perde-se
imperceptível
a pulsação.

A respiração,
a ânsia
de chegar.

Dilata-se o Tempo
e estende-se
vazio.

Só.
O Tempo.

Passagem das Horas.

Uma pálpebra só.
O silêncio da solidão
nocturna.

Um gesto subtil
e o olhar sujo,
escurecido.

O telefone pousado
em silêncio.

A mudez
das paredes brancas
da casa mergulhada
no silêncio.

A solidão nocturna.

Uma pálpebra só
se move
imperceptível.

... as asas! ( Maria Teresa Horta )

As asas
incertas
nas asas
bordadas
do avesso.

A chama,
o gume
dos corpos.

Solta
a cabeça
na cabeceira
de linho.

O suor
das tuas asas
abertas.

A pétala.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Infância.

O que deixei perdido
nos areais do Guincho,
em Setembro de sessenta e um?

Conchas, pedrinhas, ou algas sujas?

Um punhado de areia
lançado contra o vento
e o seu retorno, ferindo os olhos.

O voo lento das gaivotas,
ou o sabor seco na garganta
da água do mar?

Nada perdi nessas dunas
do Guincho, no fim do Verão
de sessenta e um.

Trago ainda comigo o aroma
dos pinhais
e a imensa solidão do mar.

A vontade de desvendar os mistérios
encerrados há séculos nas escuras
salas do Forte de S. Julião.

E a memória branca do amor,
ao atravessar a Praça do Comércio
no regresso a casa,
e que ainda sinto hoje,
por Portugal.

Eugénio de Andrade, O Peso da Sombra, Obras de Eugénio de Andrade/16, Limiar, 3ª Edição, 1989

p.54

Nem sempre o corpo se parece com
um bosque, nem sempre o sol
atravessa o vidro,
ou um melro canta na neve.
Há um modo de olhar vindo
do deserto,
mirrado sopro de folhas,
de lábios, digo.

p.63

Não oiças essas vozes que não param
de crescer a caminho do inverno,
os lugares onde o corpo de erro
em erro abdica de ser corpo
são mortais, não oiças essas vozes
onde o sol apodrece, nunca mais.

p.66

Passaste os dias a pôr sílabas
sobre sílabas, dorme, estás cansado.
Não são do rio essas luzes,
dorme, já não há rios.
Nos pátios do outono a noite
já soltou os seus cães, dorme.

p.69

Oiço correr a noite pelos sulcos
do rosto - dir-se-ia que me chama,
que subitamente me acaricia,
a mim, que nem sequer sei ainda
como juntar as sílabas do silêncio
e sobre elas adormecer.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Choque.

Ficou tanta coisa por explicar.
O navio naufragado
e a forma como se espalhou
no fundo do mar.

Os corpos projectados
no acidente de automóvel.
Os últimos instantes
do acidente irreversível.

Jane Birkin, aos 62 anos,
diz saber qual é a música
na sua morte:
Je t`aime... moi non plus.
E de si própria,
imaginará saber?

O retorno dos olhos,
o ricto dos lábios
e as mãos...

Temporal em Lisboa.

Chove forte às sete e meia.
Lisboa inunda-se de lodo
e lixo.

Mulheres em havaianas
varrem os cafés
na cidade baixa.

Quando falam para a reportagem de tv,
mostram as bocas desdentadas
e o cabelo apanhado, num desalinho.

Noite.

A insistência da chama,
o bailado vertical do lume
e o granulado da luz.

No conforto quente da sala,
não se está nunca só,
quando se está a pensar.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Outubro.

Tardes de Outubro junto ao mar,
a areia fria e o sabor a sal
dos cigarros fumados com sofreguidão.

Rumor de cascata que desaba persistente
e as tuas mãos, os teus ombros
molhados da espuma do mar.

Tardes de distracção e luz agreste,
de pinhões e café quente.

Tardes de secura fresca
e palavras dispersas.

Tantas palavras dispersas
e o aroma frio da água salgada.

E o Tempo imparável,
tão escasso já.
Os cigarros apagados
nos cigarros.

Tardes de Outubro junto ao mar
e o Tempo a escoar-se,
tão perto de nos estatelar
noutra noite tão escura.

Memória dessas tardes duma vida inteira,
para tu esqueceres depois.

Mas só mesmo depois,
meu amor.

Chuva.

De repente, começa
a chover.

Ainda o Sol se insinua
nas persianas
e a água a cair,
forte bátega de Outono,
tão passageira ainda.

O ar fresco entra
pelas janelas e vão
adormecendo os ruídos,
ao fim da tarde.

O nosso último dia de praia,
em S. Lourenço...

Eu e tu, quase só,
a areia granulosa
e a bandeira vermelha.

Recordas-te ainda?

Sobre Ti. ( Nunca um Retrato )

Menina, sim.
Sempre o será.

Doce e meiga,
também.

Resoluta e
destemida, sempre.
Sempre.

Óleo denso de forte aroma,
ou têmpera leve,
água pura, só.

A mulher mais bela,
também, claro.

Para sempre,
ou já agora.

Paisagem de Outono. ( Para a L. P. )

Paisagem de Outono,
tecida de suavidade
e silêncio,
ao meio da tarde.

Árvores que amarelecem
adormecidas pelo mistério
da vida vegetativa.

Há uma frescura no ar
que nos lava os olhos
e os acostuma à doce
diluição do horizonte.

A água do lago é um espelho
de transparências onde a paisagem
mergulha, como se flutuasse.

Espero na urdidura
da tela ver surgir
as aves, pela manhã.

E desse bordado paciente,
que cresça o musgo
em cada pedra.

Se a tua mão laboriosa
foi transformando o Outono
em sinfonia,
é porque emprestou à Natureza
a tua própria sensibilidade,
tão serena
e criadora.

Tombam agora as folhas mais secas
e já rolam revoltas,
empurradas pelo vento
que começou a soprar.

3 de Outubro de 2009.

( Pintura em acrílico sobre tela, 16,5x16,5, de L. P. )

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Maçãs Verdes.

Os amiguinhos acordam de manhã
e comem maçãs verdes.

Os amiguinhos leiem livros de poesia
em silêncio
e António Ramos Rosa
é o seu autor preferido.

Comem maçãs verdes à dentada.

Sentam-se e observam
porque são diferentes
e sentem crescer, mas não dizem,
o indizível amor.

Os amiguinhos comem
mais maçãs verdes
e compram laranjas
para fazer sumos
pela tarde.

Gostam de laranjas nas fruteiras.

Os amiguinhos rabiscam cadernos
de paisagens a lápis
e sonham.

Desenham peixes e
conchas e
maçãs verdes.

Os amiguinhos vestem-se
como se chovesse
todos os dias.

E como são amiguinhos,
cada vez mais se parecem
e comem maçãs
verdes.

Noites Brancas. ( Dostoiewski )

" Meu Deus! Um instante de completa felicidade não basta para uma vida inteira? " ( p.110 )

Esperei por ti
três longos dias,
sob um Sol intenso
e a fria Lua.

As nuvens e a chuva,
precipitavam-se e confundiam-se
na voragem infinita do Tempo,
e em mim crescia a angústia da tua ausência,
quando as tardes se acendiam
de saturação e vazio.

Os pilares de Hermes
nas encruzilhadas desertas
e tu, longe de tudo.

Os desertos, a falta de Vida.

Paisagens de De Chirico onde
se instalassem cadafalsos
e decapitassem fantasmas
aprisionados em revoluções
perdidas.

Esperei por ti, tanto tempo.

Ao quarto dia, reneguei
a Língua e o Livro
e já não sabia que fazer,
senão ficar ali, especado, à espera.

As folhas voavam no turbilhão de tempestades.
A luz e a sombra subtraíam a espiral das palavras,
até não haver mais luz.

Ao quinto, perdi a sombra,
o suor e o sangue,
sedentos da espera.

Acordei ao sexto dia
frente às auroras boreais
e os relâmpagos queimaram
as florestas,
a água secou de vez
e o Mundo desapareceu.

Acordei, não sei como,
no aquário da consciência.

Já não sabia de ti, do teu nome,
a tua figura,
nem de nada.

Ah, se eu próprio, nessa altura,
me recompusesse,
desta história esquecida,
esta palavra
apagada...

( Noites Brancas, Dostoiewski, Antologia dos Amigos do Livro, Inquérito, 2ªEdição, Lisboa, sem data. )

Mau Tempo.

Levanta-se o temporal.
Janelas abertas à trovoada
e ao rodopiar do vento.

Na noite de breu,
acendem-se velas no quarto,
que as lâmpadas eléctricas
são mais perigosas...

E as almas,
agora as almas apagam-se
para sobreviver à intempérie
e ao próprio Tempo.

Os mais aflitos,
em surdina, rezam:
- A vida não pára!
- A vida não pára!

E as ladainhas...
- Senhora dos Aflitos!...
- Santa Bárbara, Bendita!...

Segredo.

Às vezes não sei como
dizer,
talvez por não ter a voz
adequada
e não a saber colocar
sequer.

Às vezes não sei como
aparecer,
talvez por me faltar
o tom moreno, os olhos
azuis
e o puro-sangue negro
para me levar.

Às vezes não sei como
vou ser,
talvez por não saber mesmo
como imaginarias
que eu devesse ser.

No entanto,
às vezes eu olho furtivamente
para ti
e vejo-te envolta
na mais pura luz.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Rosa do Sol. ( Fernão Mendes Pinto )

Diário.
21 de Setembro de 2009, viagem de Lisboa ao Porto, 9 da manhã.

" colchas, fatos, prata lavrada, tudo de Portugal... " ( p.34 )


Manhã de Sol em Setembro.
Atravesso o centro de Portugal pela A1, rumo ao Porto.
Junto ao Mondego, o meu pensamento está contigo: adoro-te.
Na Mealhada: aromas de pinheiro e eucalipto, a tua amizade sossega-me.
Despojado de tudo, és tu que me fantasias.
A minha maior aventura é amar-te, tão só.

12:45.
Um Porto doce, para o Porto de Abrigo que tu és
em mim.

Viagem do Porto para Lisboa, 17 horas.

" Mais cinco dias gastámos rio acima: dezasseis dias, em seguida, não vimos gente nem casa, apenas ao longe, lumes bruxuleantes. " ( p.100 )


Ao passar a Ponte sobre o Rio Ancor, extenso vale plantado de milheirais, uma autocaravana de matrícula alemã é ultrapassada por um jeep com um barco a reboque.
Tarde de Sol em Portugal, no último dia de Verão.
KM 156 da auto-estrada.
Renovam-se pinhais e matas de eucalipto.
Pombal Fashion e trânsito intenso.
O Sol bate-me de chapa no rosto.


" Levámos aquela noite ao vento e à chuva, gemendo e chorando, até que, um pouco antes do crepúsculo, se avistou no horizonte uma grande chama, direito à qual nos partimos como para abendiçoado farol. Era uma queimada de carvão, e os cinco homens que ali se ocupavam no trabalho deram-nos um cibo de arroz e água fervida, encaminhando-nos para um albergue que mais longe havia e onde eram gasalhados os peregrinos. " ( pp. 117 e 118 )


Cai agora a tarde.
O céu sanguíneo escondeu o Sol algures.
A vista abrange longes horizontes.
Os automóveis circulam de faróis médios acesos.
A charneca rodeia vinhedos e pomares e, mais adiante, destaca-se o depósito de água duma aldeia próxima.
A desvairada Peregrinação tornou a viagem mais saborosa, menos linear.

Tu estarás em casa,
provavelmente preparando o jantar.
O moderno equipamento de cozinha devolver-te-á uns minutos de descanso.
Vais então sentar-te num sofá da sala e, enquanto folheias uma revista, ligas a televisão pelo comando à distância.

A Oeste, o céu toma tons vulcânicos e, por todo o lado, a noite venceu já o lusco-fusco.
Em Alverca, um motard que conduz uma BMW branca vem todo vestido de couro cinzento.

Daqui a pouco irei telefonar-te.
Terei então chegado a Lisboa.


( Todas as citações são de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, Adaptação de Aquilino Ribeiro, Colecção Clássicos da Humanidade, Sá da Costa Editora, 2008, Edição Expresso, Data Emissão 2009. )

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Adoro-te. ( Para ti )

Tu depois não vias
que o gelo derretia
e os ovos dos pinguins
se partiam.

Cansaço.

As crianças que guardam cabras
na savana africana.

A urze queimada dos bosques
na Europa distante.

Uma inquietação infantil.

Labaredas que tudo invadissem,
mesmo as casas.

O estridente zumbido dos gafanhotos,
lá ao longe,
num futuro diferente.

E o vento depois,
acendendo fogueiras na escuridão do mato.

Os grilos ensurdecem
com o batuque dos tambores.

A fome.
Estes rostos sujos.

A verdade afinal
é um drama.

Levantam poeira os camiões,
o vento rola agreste pelas encostas
e o horizonte é a perder de vista.

Na Europa longínqua,
os guindastes atacam sonolentos
os prédios em construção.

Tantos rostos sem rosto.
Fome.
E sonho.

Tu, sempre. ( 21 de Março de 2009 )

Amo-te
com palavras simples,
a palavra Paz.

Amo-te como quem sorri,
rajada de vento que
levanta os pássaros em debandada.

A palavra Água,
a palavra Luz.

Amo-te com serenidade,
um leve piscar de olhos.

Amo-te como quem respira,
como se sonhasse.

Amo-te e são longínquas
as paisagens.
O céu, extenso e profundo.

Amo-te assim,
com a palavra Tanto,
a palavra Muito,
Amor.

Barroco. ( Para ti )

Luzes fortes, raios
Ultra-violeta e
Infra-vermelhos explodem
Sobre a minha cabeça,
Aberta ao espaço estelar.

Penumbra depois,
Ao fim do dia, e as
Sensações que me acalmam o
Coração inquieto, revelam
Onde está, onde pára o meu
Amor...

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Conto. ( Homenagem a Franz Kafka ) Março de 1998

( Foram tempos difíceis, 1997/1998. Mas também foram tempos que já lá vão. Termino com a transcrição deste Conto dedicado a Kafka e a satisfação de viver outra vida, noutro século. Je est un autre, eterno Rimbaud. )


CONTO
Insectos que rastejam, que se dispersam entre as árvores e se lançam pelas clareiras em busca de alimento e se alimentam do sangue de animais mamíferos, de vacas, do nosso sangue.
Insectos que voam, que se espalham pelo ar, em volta das árvores, que se soltam pelas clareiras, perseguindo talvez o sangue que os alimenta e nem sei como o detectam.
Insectos que pousam na água das nascentes, insectos que o Verão gerou e que, de forma sibilante, tudo perseguem, as fezes das vacas, o cheiro transpirado dos corpos, a pele porosa e desprotegida dos nossos corpos.
São esses insectos que nos perseguem, quando atravessamos os campos e as estradas em busca de cidades, que sonhamos realizarem os nossos devaneios mais inocentes.
São os mesmos insectos que perseguindo os nossos passos erráticos, o fizeram também a Verlaine e Rimbaud, saindo da Normandia a caminho da Bélgica, ou ainda Apollinaire, quando chegava a Colónia ou a Munique.
Os insectos que Serpa Pinto passava as noites a tentar eliminar, quando pernoitava em cubatas que lhe iam cedendo na sua itinerância pelas margens do rio Zambeze, como nos conta em Como Eu Atravessei a África.
Sem ser exaustivo, refiro as aranhas e os escaravelhos, que simbolicamente tanto de bom representavam entre os egípcios do tempo dos faraós, como aquele enorme insecto que descobrimos na Metamorfose de Kafka, o insecto da culpa duma vida mesquinha, e nesses opostos encontramos justificação para a nossa náusea, para a enorme repugnância que sentimos na monotonia das grandes metrópoles, quando nos deparamos inadvertidamente com esses repugnantes seres.
E é então que damos uma luta sem tréguas às baratas, às traças, às formigas, que irrompem do mais fundo dos armários, pelas roupas que guardamos, ou nos alimentos que temos em dispensas e cozinhas, nas prateleiras, sobre as mesas.
Não viveremos jamais sem insectos. Vão mesmo resistir-nos no Tempo.
Chicago para os ácaros, a Holanda dos pulgões!
São pois os insectos, um capítulo de mineralogia viva, seres abjectos que nos estimulam a imaginação, como talvez se leia em Luciano, bichos gigantes que a micro-engenharia fotográfica desvenda para nosso horror e de que hoje tanto sabemos sobre a sua voragem, a sua força hercúlea, ou a horda cega para salvar uma única rainha geradora.
Habitam os formigueiros, ou os cortiços, dentro do tronco das árvores, na madeira dos armários, nas escadas, nas torres de térmitas, galerias, túneis e reproduzem-se incessantemente, os malvados!
Fascínio neo-gongórico, sei bem, decadentismo serôdio que faz eleger os insectos, apóstolos do comportamento!
Peter Gabriel tão fantástico num jardim de caracóis!
Alice no País das Maravilhas!
Hoje é possível ler obras que explicam os insectos com todo o pormenor romanesco.
Serão úteis cientificamente...
Que importa?!...
Este conto é sobre os insectos que atravessam os campos, que sobrevoam a água, sempre presentes na vida dos mais livres, como em Walt Whitman.
Insectos que proliferam nos tapetes, dentro das gavetas, no fundo de sacos, no interior de elecrodomésticos.
Vou usar uma lupa para observar os seus aparelhos bocais, o seu abdómen, ou o modo como as suas asas se ligam ao tronco.
Vou revê-los em emblemas e em bandeiras.
Vou relê-los na imaginação de pacientes.
Na verdade, não queremos desfazer-nos deles.
Eu não imagino o Mundo sem insectos.
Nem a Morte.
Merecem bem um poema.
Ou um conto.

Diário. ( Março, Abril e Maio de 1998 )

Vês como eu vivo, na margem de tantos erros. Como eu vou de Charlie Brown a Fritz, The Cat, buscar a aparelhagem salva-vidas com que vogo, solitário, no mar-alto da existência que reinventei... para nada...
Para ficar, como quem fica só.
A tergiversar lugares comuns.
Erro Poético de quem leu Erro Próprio, de António Maria Lisboa e ficou na mesma:
para onde quer que me volte, não sou capaz de deixar de ouvir os Rolling Stones, de rever M., de Frtiz Lang, fumar Samson, comer hamburguers.

Enquanto podava arbustos e trepadeiras, no jardim de sua casa em Vila do Conde, a senhora gritava para dentro de casa:
- Toma um banho rápido, está a acabar o gás! Toma um banho rápido!

Árvores que são como cavalos, quando soltam as crinas no galope livre.
Estrelas, que são como praias serenas, quando o Sol se põe e a areia ainda cintila.

São bolas de fogo que a noite acende.

" Já tinha aceite que a vida não é senão uma coisa que se repete(...) A minha vida deixou por completo de me interessar. " ( Pedro Paixão, Vida de Adulto, Edições Cotovia, 6ª Edição, Dezembro de 1998 )

Há muito que não brincamos com esta luz.
Os aviões a levantar voo.
É muito cedo.

É muito cedo, é muito cedo.
Não me doi o pescoço. Não me doi o peso do estômago, dos órgãos que as costelas comprimem, na cavidade toráxica.
A tontura dispersa-nos.
A respiração contida: não sou capaz de abandonar-te.
I want you, but I don`t need you.

As torneiras de água quente abertas jorram fumegantes.
Água muito quente.
Um dia será assim: Nunca mais nenhum compromisso.
Instantaneamente.
Já hoje se dilatam os prazos, se adiam, por vezes, os contactos.

Em pura perda, a nossa relação.
Werther perdido.
Perdido, o coração de Werther.
E tu gostas, tu ainda queres mais.
Tu queres, tu mesma o disseste, já nem sabes como.

Hoje, são temporadas inteiras que não vos vejo, longos períodos de Tempo.
A preia-mar em silêncio.
No mar intenso esfumou-se a tua imagem.
Em todas as marés se apaga.
Um lindo postal, que guardo entre as páginas de um livro esquecido.

A imensa mansidão dos teus ombros.
E o pescoço.
Imensa mansidão, devagarinho.
Sou mesmo capaz de abandonar-te.

Há muito não brincamos com esta luz.
Divididos em sofás, no silêncio.
Imensa vastidão, os teus ombros e o pescoço.
S. Petersburgo não forma só sobre a neve outra ondulação de neve.
O sonho já se esfumou há muito.
E a neve apagou S. Petersburgo desse sonho.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Tu.

As flores,
o vento, a luz do Sol.

As pequenas distracções,
o sorriso,
o Amor dos que são
realmente teus.

Tu mereces tudo isso.

Partida. ( Para a L. P. )

A esfinge que retrata a solidão.
Farol perdido de Alexandria.

O teu mar,
agora são todos os mares.
E a tripulação
é sobretudo filipina.

Há uma noite assim,
na baía do teu corpo.
Luzes intermitentes,
que repousam na água.

E que tu esqueces.

Diário. ( Janeiro e Fevereiro de 1997 )

Um cisne.
Porém, vogando
em águas negras.
O cuidadoso chapinhar da ave.

O olhar acutilante de uma águia.
Um só voo,
o mesmo balanço
ao poisar.

A grande pressão do Tempo,
esse envolvimento.

Um cinzeiro para apagar um cigarro.

Os reactores do Boeing 707 da Sabena na pista principal
da Ala-Norte
do aeroporto de Luanda.

Corto Maltese na bagagem de um adolescente.

O melhor refúgio.
Um salão de chá entre rochedos.
Um refúgio?
A esplanada junto ao rio.
Música para quebrar o silêncio.

Coisas com que eu fiquei de Agosto de sessenta e sete.
Um 45 rotações,
ou a postura que se vê numa fotografia.
Inocência perfeita.
Em Agosto de sessenta e sete.

São momentos breves, os gestos do banho,
cada fricção, cada lugar do corpo.
Deriva permanente.

Uma fonte de água fria,
em poliestireno expandido.

A Cidade em 1997.

Pássaros.
Insectos.
4`33`de John Cage.
Silêncio.

Depois,
os sons da floresta,
um tombar permanente de cascata,
o ruído de um formigueiro,
símios que guincham,
restolhada de ramos nas grandes árvores.
E o seu eco.

O silêncio outra vez.
Depois,
tudo recomeça.
Agitação, gritos, silvos,
ramos que se agitam,
a floresta.
O Tempo.
E a vida da floresta.

A vida obsessiva nas grandes cidades,
há alguma comparação?

Diário. ( 26 de Outubro de 1996 a 8 de Janeiro de 1997 )

1. Respiração lenta.
Névoa.
Manto cinzento recortando os edifícios.
Uma gaiola de canários à janela.
Manhã fria.
É preciso recomeçar.

2. A viagem é agressiva.
É uma autêntica agressão para quem viaja.
Um rochedo na paisagem.

3. Afinal, absorvido no meu trabalho,
é o perfeito deserto à minha volta.

4. De dentro da tua voz namibiana
de New York.

5. Mãe e filho num Toyota dos anos 60, à minha frente, ao passar pela Estação de Serviço, a
senhora faz correr o limpa pára-brisas.
Eu curvei para o Fonte Nova e eles continuaram. A caminho de Benfica? E daí, para onde
ainda?

6. Ele e ela no salão de jogos, bisbilhotando. São o casal esquerdista, o casal avant-garde.

7. Napoleão a cavalo entre as asas de uma borboleta.
Ou seria uma águia?

Franz Schubert e... Tu.

Regresso ao mar tempestuoso,
intrépido navegador solitário.

Arrisco a travessia das grandes
correntes,
prancha que enfuna como as velas
tensas
de uma fragata veloz.

Espraio-me depois sobre
o teu corpo, como
espuma que borbulha nas luras
de caranguejos,
ou algas que repousam revoltas
na baixa-mar.

Nas cidades,
os salões apagam-se
para o silêncio mais profundo,
quando o Sol se põe no horizonte
e as cores em fogo se estendem
ao infinito.

E é então
que o teu corpo arde,
tão lentamente como
uma sinfonia incompleta
ou uma canção crepuscular.

George Steiner, " Errata: Revisões de Uma Vida ", Antropos, Relógio de Água Editores, Novembro de 2001, p.113

Que monótono não seria fazer amor no Paraíso!

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O Amor ( para L. P. )

For quiet.
A lot of
reasons.

For quite a
while.

For a lot
of reasons.

Acidente nº 5.

E tu não eras de todo
uma lenda viva de Itália.
Não repousaste nunca
nos braços de Colossos.

Eles, pura
e simplesmente,
não existem.

E tu
és um sonho
tremendo.

Acidente nº 4.

Nunca seria levado
pela voragem do seu Tempo.
Bastava-lhe, para isso,
viver.

Ambulâncias paradas
com as luzes vivas
a piscar.

Nos navios atracados
ao cais,
jorra a água que serviu
de refrigeração aos motores.

Acidente nº 3.

Seria sempre um ingénuo.
Lírios brancos.
O desastre inesperado.
Ofélia flutuando.

Passaria o Tempo a coleccionar
imagens,
as paisagens nas imagens
de Santos, nas paisagens
de fim-de-século.

Pastor do irrealismo.
Distraído,
emocionado.

Acidente nª 2.

Quero ser velado em silêncio,
enquanto a pira arder
e o fumo do incenso se espalhar
no ar.

E ter uma mulher
discreta,
de cabelo dourado apanhado,
vestida de castanho e preto
a acompanhar.

Acidente nº 1.

Passo as tardes
entre as folhas
e o vento.

Paira no ar
o fumo lento
de um cigarro.

O silêncio
adormecido
dos motores
dos automóveis.

Desidratação
imperceptível
de todas as coisas.

Secura
e vazio,
tão só.

Luís de Camões, Lírica, Terceiro Volume das Obras Completas, Círculo de Leitores,Fixação do Texto de Hernâni Cidade, 4ª Edição, 1981, Soneto, p. 218

A fermosura desta fresca serra
E a sombra dos castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;
O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do Sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra;
Enfim, tudo o que a rara Natureza
Com tanta variedade nos oferece,
Me está, se não te vejo, magoando.
Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando
Nas mores alegrias mor tristeza.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

21.VIII.2009

É a morte que nos acorda por vezes,
esse reverso tão luminoso da Vida,
para o mais profundo nada,
o mais completo temor.

É um sobressalto
que faz a tarde mais doce,
sem sequer o querermos,
e torna irresolúvel
a tremenda tragicomédia
que a Vida é.

Mas, que importa isso agora,
se lá fora está um calor atroz
e Agosto se estende
por mais uns dias
ainda?

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Raul Brandão, op. cit., pp. 332, 333

O promontório é um punho nodoso, com dois dedos estendidos para o mar- a ponta de S. Vicente e a ponta de Sagres. Nos dias sem sol, como o de hoje, os dedos parecem de ferro: apontam e subjugam-no. Em frente o mar ilimitado; em baixo o abismo, a cem metros de altura. Ventanias ásperas descarnam o morro cortado a pique, e no inverno as vagas varrem-no de lado a lado.
Sagres é o cabo do mundo. Levo os pés magoados de caminhar sôbre pedregulhos azulados, num carreirinho, por entre lava atormentada. Do passado restam cacos, o presente é uma coisa fora da realidade, grande extensão deserta, pardacenta e encapelada, com pedraria a aflorar entre tufos lutuosos; ( ... ) O mar- é verdade, esquecia-o- mas o mar como imensidade e tragédia, e ao lado a gigantesca ponta de S. Vicente, só negrume e sombra. Mar e céu, céu e mar, terra reduzida a torresmos, e o sentimento do ilimitado. Esta grandeza esmaga-me.
Grande sítio para ser devorado por uma ideia! ( ... )

Raul Brandão, op. cit., pp. 328, 329

Atravesso Portimão de olhos postos no castelo de Arade, onde o velho poeta sonha com o Fausto, e talvez como êle em recomeçar a vida. A luz é cada vez mais viva. Um homem com dois cabazes apregôa na rua: é um tipo sêco e tisnado de mouro, de camisola azul e perna nua. Passa uma carrinha guizalhando, e logo atrás outro burro com bilhas de água fresca. É extraordinário o que êste pobre jerico inocente e peludo, de olhos límpidos, trabalha no Algarve. É êle que leva a fruta ao mercado e tira a água das noras. Lavra as terras calcinadas, transporta pelas estradas sòlheirentas, adornado com cordões vermelhos, quási uma família a dorso.(...)
Detenho-me um instante na cenográfica praia da Rocha, extasiado nos dois grandes penedos destacados e num fio de areia doirada ao pé da água azul- tudo pintado por Manini agora mesmo. A um lado a ponta do Altar entra decidida pelas águas; do outro, o esfumado Lagos mal se entrevê muito ao longe. (...)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O Último Verão

Desceste os degraus vezes sem conta,
para uma praia abrigada pelo molhe,
do outro lado do rio.

Em frente,
a enorme extensão de areia
mais parecia a bancada principal
de um autódromo,
numa tarde colorida de Domingo.

Foi o vento sueste que trouxe
as correntes quentes para a praia.

Tu gostavas de mergulhar
e passavas muito tempo
dentro de água.

Depois, apanhavas conchinhas
na rebentação,
ou ficavas simplesmente de pé,
porque isso era bom.

Sentavas-te, já tarde,
na varanda de casa,
para contemplar a Lua
em Quarto Minguante.

Uma noite, pela auto-estrada fora,
levei-te ao Cabo mais ocidental,
junto ao grande farol,
pelo simples prazer
de viajar contigo.

Nem tempo houve para parar
e observar o céu tão estrelado,
tão maravilhosamente deslumbrante
e aceso.

Deste acaso por mim,
em todo esse tempo
de distracção?
Pois se nunca te levei flores
pela manhã,
nem perfumei o ar
à tua volta,
de lavanda,
ou alfazema fresca...

Oh, felicidade rara,
eu poder amar-te tão só,
e o tempo a escoar-se,
tão perto já
de se apagar,
para nós dois.

Vimeiro

Memória desses dias
junto ao mar,
o teu sorriso espelhava
a força das ondas.

O céu aberto
na limpidez dos teus olhos.

Lembrança das verdes falésias,
na curva dos teus ombros,
no teu corpo deitado, tão suave.

Recordo ainda
o voo lento das gaivotas
e a neblina fresca a formar-se
ao meio da tarde.

A minha entrega ao Mundo,
na serenidade dos teus braços.

E depois as crianças,
logo pela manhã,
bebendo a Vida
nas suas tropelias
sem fim.

Os Pescadores, Raul Brandão, edição definitiva, 10º milhar, Livraria Bertrand, sem data, pp.209,210, 211

" Vou primeiro ao Baleal, que é a mais linda praia da terra portuguesa. Não passa duma grande rocha desligada da costa e fundeada a trezentos metros- mas esta rocha é uma ossada, e talvez o último vestígio da Atlântida, saindo do mar azul a escorrer azul, e prêsa à terra por um fio de areia que nas marés mais vivas chega a desaparecer. Dêste ancoradouro, com uma baía ao sul formada pelo Carvoeiro, e com outro côncavo ao norte entre a rocha e a costa, vê-se o esplêndido panorama da terra, do mar e do céu. Vive-se extasiado e embebido em azul, no meio do mar azul, no meio do mar verde, no meio do mar dramático. Voga-se em tôda a luz do céu e em tôda a côr do mar. Dum lado o areal em circo e aquele grande morro estendido pelo mar dentro; do outro, e até onde a vista alcança, todos os tons da costa, desde as labaredas das terras sulfurosas e as chapadas negras dos rochedos, com riscos de vermelho, até ao biombo que vai passando e desmaiando, primeiro roxo com aldeias ao sol e fundos verdes de pinheiros, depois transparente até atingir o indistinto e o diáfano numa última palpitação de claridade nublosa. E tudo isto muda de côr e se transforma segundo as horas que passam. Há momentos em que é doirado, de manhã ou à hora do poente. Há outros em que me sinto abismado em azul e atascado em azul. O movimento das ondas esmorece e acalma. À volta só luz e côr. A costa some-se. Uma apoteose de oiro e verde lá no fundo. Do horizonte à praia corre e cintila a esplêndida estrada do sol. E agora - reparem! reparem! - o mar é verde e o céu perdeu a côr... (...) "

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

29 de Julho de 2009

Luzinhas da cidade à noite,
candeeiros antigos do bairro vizinho.
O som de um motor cansado
perde-se ao longe.

Ninguém imaginaria ver de dia,
as praias cheias de gente,
de cores e de luz.

Tu, regressando da água,
num sorriso aberto,
o cabelo a escorrer.

Agora, tudo é silêncio
e solidão.
E a tua ausência
dói tanto.

No Messenger

Falei contigo em silêncio,
como se falasse para mim.
Um arco-íris da mudez.
A mais absoluta luz.

Falei contigo, sem nenhuma sombra
de dúvida.

Depois, foste.
Voltaste ao teu Outro Mundo.

A doce finitude
da Vida.

E eu gostar
tanto de ti.

24 de Fevereiro de 2009. Magoito.

Porque é que tudo
o que faço e vejo
me devolve
a sensação de estar contigo,
a imagem da tua presença?

Porque tu preenches a casa toda,
o ar que me envolve
e o doce passar do Tempo.

Amor,
eu quero continuar ao Sol,
perto da força do mar,
sentir ainda esta brisa fresca,
que é a tua respiração
em mim!

PARA A L. P.

Dorme um sono bonito,
no Báltico a terra
está branca de neve.
Um sono suave
e a neve ilumina
a noite das renas
na Lapónia.

Dorme assim,
serenamente
e a vida fervilha
em Kuala Lumpur.

Os gráficos invertem
as tendências bolsistas
e aos microfones,
vozes nítidas anunciam
os próximos voos, nos aeroportos.

Tu estás quieta a dormir
e as tempestades fustigam
os petroleiros no Índico.

Os indonésios
ouvem os transistores em onda-curta
nos camarotes e sonham.

No bloco operatório,
os cirurgiões manipulam
com destreza os pequenos bisturis.

Dorme um sono feliz,
meu amor,
deixa os golfinhos
atravessarem as ondas
com alegria.
As baleias cantarem
no oceano profundo.

Os radares captam
movimentos próximos
e tu continuas a dormir.

Os polícias gesticulam
para controlar o trânsito caótico
das grandes metrópoles.

E tu dormes,
envolta num édredon macio,
tu dormes ainda,
um sono bonito.

PARA A L. P.

Não estás agora aqui
e os camareiros atravessam
os corredores, nos hotéis.
As enfermeiras repousam
nas suas salinhas nos hospitais.
E os aviões têm os motores ligados
na pista dos aeroportos,
para um novo voo.

Tu não estás
e as nuvens cobrem o céu
da cidade.
Os eléctricos atravessam vazios
a Baixa deserta.
Tu não estás
e os noctívagos correm furtivos
os bairros onde há diversões.

Depois, ao amanhecer,
a cidade anima-se para mais um dia,
mas tu não estás.

Fechada no teu quarto,
tu estás a dormir,
tu descansas ainda.

Meu amor,
tu estás tão exausta
da rotina diária.
E até de mim,
que te peço tanto.

Deixa-te estar assim,
tu precisas descansar,
todo o tempo do Mundo,
meu amor.

Desliga o telefone,
não ouças ninguém.

PARA A L. P.

Pedra a pedra
se arma o equilíbrio
da geometria.

O sobrevoo tão sereno
dos planetas em volta
da sarça ardente.

O seu regresso
em plenitude.

Levaria comigo o teu rosto
numa viagem
sem retorno.

A luz de água azul
do teu rosto.

Todos os fogos acesos
na noite
pura e doce
do teu rosto.

E fundaria algures
uma nação milenar
com as letras
lisas, digitais,
do teu nome.

Pintura

A penumbra interior,
a luz coada
duma janela oculta.

O vulto doce
virado sempre para quem olha.
A espátula serena
do seu corpo.

Depois,
mais lentamente ainda,
como se deita,
ou recolhe os pés,
para os enfiar à pressa
nas sandálias.

Anjo de Luz ( Alexandre Herculano )

Tu és uma mulher
de sonho.
Tu és
o puro vazio branco
da luz.
E não sabes que és.

Porque é que
são os pássaros que
vejo mais cedo
na manhã azul?

Ultra-Romantismo

Não há estrelas neste céu opaco
em que as nuvens densas cerram todo
o horizonte.

Os melros não revolteiam pelos jardins,
nos seus trinados breves
e os pirilampos há muito
não acendem as suas asas
pelos campos.

De quando em quando, pia
a coruja que habita o campanário
da igreja
e pela janela do quarto
vejo a minha alma casar-se
com os ciprestes do cemitério.

E é só quando sopro a vela
na mesinha,
que sinto a tua figura encher completamente
o espaço em meu redor.

Tu, dormindo, não dás por nada.

PARA A L. P.

É um olhar que se distancia
e faz-se silêncio, nesse olhar.
Um gesto por fazer
traz a solidão a esse gesto.

Os patos, no entanto,
voam em fila sobre o mar.
E os ursos suspendem a rota
dos salmões, subindo os rios.

Um sorriso breve
e a água tomba em cascata
desse sorriso.

Rolos de pó que os jeeps largam
pelos caminhos.
Sombras fantásticas atravessam
as dunas nos desertos.

O corpo tão imóvel
e o tempo pára nessa imobilidade.

Tanta vida passada
e que não passou,
ainda.

VIAGEM ( Para a L. P. )

Olha as bicicletas
ali arrumadas,
olha as bicicletas.

Parecem trapos sujos,
para ali atirados.

É um segredo
que tu sabes.

O Sol à tarde,
nas vitrines
abertas.

VERÃO

O silêncio tão austero
que nasce dentro de casa.
Como se fosse inóspito
e deserto
o espaço em volta.

O gato dorme
ao fundo da cama.
E de longe em longe,
um carro atravessa a rua.

É Verão, lá fora
faz um calor infernal.

O tempo parou.
Vou fechar os olhos,
vou ficar por aqui.

PARA A L. P.

Não eram para ti
essas palavras perdidas
no fundo do
desespero.

Pareciam automóveis que se
estampavam contra
a noite.

Um eco de sons precipitados
no óleo derramado
pelo chão.

Um grito de
angústia e solidão.

Não eram para ti
essas palavras de estertor.

As conversas tolas,
o raciocínio cambaleante,
apenas confirmavam o vazio
da tua ausência.

PARA A L. P.

Estes terrenos bravios
que procurei pela manhã,
as tocas perdidas junto
a rochas sem nome,
e o céu azul,
como sempre.

Noites de vela acesa,
a mesa tosca de pinho,
e o ar desfeito do tempo,
em volta.

Foi a uma estação assim
que sobrevivi.

O doce sorriso dos dias.
Quem foi,
que não viu?

terça-feira, 4 de agosto de 2009

PARA A L. P.

Toda a noite
os pequenos pontos luminosos
assinalavam a presença
de bóias
e a água rodopiava entre as rochas,
com um som de cascata.

Empoleirados nas escarpas,
as lanternas acesas,
pescavam carapaus em silêncio,
arriscando a vida
a cada momento.

Partiram de manhã cedo,
depois de lançado o último isco,
deixando para trás o burburinho da água,
e a sua cor de pastis.

Ficámos então só nós dois,
a janela aberta,
o dia a chegar.

Tão juntos como se quiséssemos,
em simultâneo,
transpor as portas do paraíso,
para lá morar.

Ainda hoje aí estaremos,
para quem for olhar.

PARA A L. P.

Viajámos depois para Sul,
deixando para trás as penínsulas mais ocidentais,
o pôr-do-sol nos areais,
luzinhas acesas ao fundo,
e as noites de chuva fria.

Nunca mais veremos a criança
que nos acenou algures, o capuz posto,
o cãozito ao colo.

Fechámos as portas como quem
se despede do passado,
e tudo ficou arrumado e limpo,
como se não tivéssemos sido nós
a estar ali.

Identificariam, é certo, o nosso rasto
para uma qualquer investigação pericial.
Mas quem o faria?
Quem o faria por nós?

Nunca mais
outros dias assim.
Apenas esses lugares permanecerão,
mudando lentamente,
na nossa memória.

PARA A L. P.

Lembras-me a areia branca
e a brisa fresca sobre o mar.
Lembras-me o voo lento
das gaivotas
e as cores,
o amarelo e o azul,
mais suaves.

E não sabes.
Tudo em ti é a beleza
mais pura.
Tudo em ti me
lembra
que a verdade existe
e tu és a sua perfeição.

PARA A L. P.

Quando penso em ti,
sinto o coração ser fustigado
pelos ventos polares
e o eco longínquo
dos balidos de alces.

É uma paisagem invisível
a tua figura,
envolta na neblina dos bosques,
que me aquece o sangue.

E o meu sonho
traz-me o contorno inóspito
dos castelos perdidos da Baviera.

Amo-te assim tão suavemente,
como os barquinhos de pescadores asiáticos
que balançam na cinza fria
do Árctico,
ao amanhecer.

E o futuro, que só agora começou...

Recordas-te da cidade onde nasceste,
a poalha fresca nas ravinas e nas falésias sobre o mar,
a atmosfera tão densa dos campos e da terra,
numa combustão de cores,
que nesse tempo ainda desconhecias.

Esse espaço foi-te tirado depois,
pura e simplesmente.

Ainda te penduravas nos ombros,
como fazem os gatos,
quando, de cócoras, descansam.

As crianças, quando riem e brincam, são como
as da tua infância distante.

O silêncio
ainda hoje te inquieta.

E a passagem do tempo,
tão pertinente sempre.

Havia doces na tua infância,
a "pequenada" toda devorava-os.

E havia esse mar imenso,
que afluia ferozmente contra a costa imensa,
como uma iniciação.

Sábado, 29 de Outubro de 2005

O lago é pequeno e fechado.
Parece uma cicatriz no meio da paisagem.
Está cheio de lodo e sujidade.
É um charco autêntico.
Habitam-no os insectos e as rãs.
As crianças atiram paus e pedras.
Moram na urbanização que construíram
perto das suas margens.
O lago tem os olhos fechados.
Há muito que não faz
senão dormir.

27 de Outubro de 2005

O dia assim é tão feio e triste.
Devia ser antes
vazio e branco
como uma gota da chuva
que cai.

Asfixia-me o céu,
de tão saturado.

As luzes acesas do carro
não deixam ver o caminho.

Ouço na rádio que lavra
um incêndio em Seia,
desde a madrugada.

Na escola o meu nome não está
na lista negra
das faltas.

Bernardo Soares, O Livro do Desassossego, vol.2, p.177, Ática, 1982

"Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-ha a porta do fundo, e tudo o que fomos- lixo de estrellas e de almas- será varrido para fóra da casa, para que o que há recomece."

O Meu Filho

O meu filho,
no meio dos carros.
Um pinguim de polies-
tireno a fazer-lhe
a continência.

E eu
um dia também,
na manhã fresca.

16 de Outubro de 2003

A gaivota sabe que a água devolverá o pedaço de peixe à praia.

O Famoso Caderno

Yes, she`s a lady dot com é um blogue de registos vários; anotações, transcrições, diário, epístolas, prosa, poesia...
Rascunhos e alguns esquiços.
Odes?
Parábolas?
Elegias...
Canções...