sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Luís Veiga Leitão, A UMA BICICLETA DESENHADA NA CELA.

Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste.

Aqui,
onde o dia é mal nascido,
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido...

Bem haja a mão que te criou !

Olhos montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.


Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, M. Alberta Meneres e E. M. de Melo e Castro, Livraria Moraes Editora, 3ª Edição, Lisboa, 1971, pp. 305 e 306.

António Ramos Rosa e Herberto Helder.

domingo, 26 de dezembro de 2010

A Um Conhecido Carioca.

A tua mesa simples,
meu bom amigo,
seria mesa de mulher?

Mesa de mulher,
sim.
Tu não precisavas do estofo,
a toalha,
os aparatos de Natal.

A noite lá fora,
estarias só nessa noite especial,
essa noite tão tua?

As bebidas de tostão,
velho amigo
e a tua melancolia,
seria?

Uma noite sem igual?

Como te oiço rir,
nessa noite sempre tua
e que tu armaste
para a tua solidão...

Roberto Carlos?...
Já foi,
já era...

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Juventude.

Atravessaste tão depressa
a estrada,
a janela entre os arbustos
e o teu vulto fugaz,
o rosto,
o nariz grego,
a testa de Anatólia,
o sorriso pirata
das barcas do Bósforo.

Veloz, singravas por atalhos,
vias florestais, encostas tão íngremes,
como a solidão em que vivias,
o teu segredo, a noite escura.

O casaco cruzado,
a mala.

O teu silêncio,
o teu segredo
na noite escura,
o marulhar da água,
a luz dum sorriso,
as estrelas.

O carro,
tão rápido.

O Sonho 2.

A noite com cheiro a estopa,
tão cedo no camarote,
mas tão de noite.

O ruído permanente do ventilador.

A luz acesa,
a porta frágil,
plastificada.

A quilha rasgando
o sonho.

Os chocolates?

Sentiam-se pelo aroma,
logo de manhã.

E o café.

A tosse seca
de um cigarro.

Fuga para o Egipto, de Fra Angelico.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Desgosto 2.

A minha vida hoje
é uma bruma entre penedos,
leves colinas geladas
e penhascos de cinza,
enevoados.

Tive o coração cheio,
a imagem sagrada,
a figura pagã.

As fardas bucólicas
dos franceses,
a glória da alvorada.

Hoje, volto ao lusco-
-fusco a espevitar a lareira
e sonho.

E sonho.

Não tenho segredos.
Sinto a garganta
apertada.

Que me interessa
que a turba
chapinhe.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Feliz Natal!

Este frio gelado de Dezembro
e as luzinhas de Natal
acesas pela madrugada fora.

O vaso
e o seu vazio.

Acendo um cigarro
e rápido se formam geometrias
na espiral do fumo.

Mas está quente aqui,
nesta sala confortável.

Penso com ternura nos amigos,
sem que o saibam.

Inocentes,
devem dormir agora.

E contemplo a noite,
distraído.

Demoro-me entre
um anjo
e uma baixela.

" Só se pode atingir a plenitude
através do equilíbrio. "

Feliz Natal
e um Excelente Ano de 2011!

domingo, 12 de dezembro de 2010

Reunião.

- A Manuela não viu ninguém?

- O Luís inflamou-se?

- Era a única Manuela,
Luís.

Só estava a Manuela.

A minha Manuela,
a minha prima Manuela,
apetece-me tanto recordá-la...

Apetece-me que agora a sala
cheire a este aroma
de tinta-da-china
e café.

Areia
e baloiços.

E tu não tens nada com isso.

Tu não gostas
de poesia.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Revoada.

Quero ver-te amanhã,
para te falar do fogo,
o fogo que queima,
abrasador.

Agora não,
estamos no Inverno.

Falar-te da Praça
do Campo Pequeno e ver-te,
só a ti.

Ver-te
num rectângulo verde
e azul
e branco.

Nos arbustos,
junto ao ringue.

Uma vez,
numa tarde de Domingo,
um malabarista manuseava
tochas acesas de fogo.

As línguas das chamas
pareciam espíritos.

Mas ver-te,
só a ti,
a sorrires-me.

Só a ti.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

John Lennon.

A vida branca dos jardins
e uma voz ao telefone.

O Paraíso dos fatos,
dos botins de verniz preto
e o Rolls-Royce.

As túnicas que vesti,
de linho da Índia.

O aroma do jasmim.

O protesto nu,
mensagem curta,
alguma inocência confirmada.

Viveu o seu próprio futuro
e foi bom tudo isso.

Ouço-o outra vez ainda,
com o mesmo prazer planetário
e sorri,
ou tosse
e é o primeiro.

Sarcástico, alegre.

Depois, um dia,
o vento... as estrelas...

Florbela Espanca, ?

?

Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros,
Sem nos dar braços para os alcançar?!...


Obras Completas de Florbela Espanca, Volume VI, Cartas 1923-1930, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1986, p.154.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

SETE CANÇÕES DE DECLÍNIO, de Mário de Sá-Carneiro.

7

Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
- Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a posso ir apanhar!

Paris - Julho e Agosto 1915.


Obra Poética de Mário de Sá-Carneiro, Introdução, Organização e Notas de António Quadros, Publicações Europa-América, Lisboa, s.d., p.137.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Tu Não Estás.

É uma espécie de morte
a falta da tua companhia,
ao estacionar o carro.

As sombras das faias
agigantando-se no passeio.

Vou jantar um bife
no meio das arcadas.

Pousar os talheres
depois da sobremesa.

Irremediavelmente,
viver o mistério da tua ausência,
numa noite cheia,

noite luminosa,
uma noite de Lisboa.

Aqui, um dia, há muito tempo,
fotografaram uma carroça
a descer a avenida.

Fait-Divers.

Estavas mesmo ali a seu lado,
podias beijá-lo no pescoço
e ficar a ouvi-lo falar.

Em vez disso, resolveste recuar,
responder a alguém,
deixar acabar.

Ele tinha as orelhas a arder
quando foi embora.

Tu passaste a língua
pelos lábios.

Foi então que
olhaste para mim.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Mas Que Chatice!

Se o eco absurdo dessas vozes zangadas
ainda te aflige, ou a sua falta de rasgo te inquieta,

a exiguidade de meios, os poucos gastos,
o ganho quase nulo dos idiotas que se comprazem
em serem duma linhagem de barracas,

então vira-te contra os poderes,
os discursos manhosos dos senhores
da mó-de-cima,
desliga os noticiários por hoje
e ouve música,
ou apenas
o silêncio.

Depois saberás onde estar.

As Luzes.

As luzes contra a noite,
luzes dispersas e coloridas.

As pequenas luzinhas tracejadas
do avião invisível, que se lança
na pista e ao longe se ergue,
com um ruído forte de ventoinha.

As luzes ainda, luzes fracas
e tristes, na desértica zona industrial
a oeste da cidade.

Sei que os restaurantes da Baixa
se animam a esta hora, de luzes
feéricas, embutidas ou quebradas
por abat-jours alegres.

A luz, naquela janelinha
sem graça, pela noite fora.

As luzes apagadas
no bairro humilde.

As fitas de luzes da ponte alta
reflectidas na água escura do rio.

É uma luz calma,
a que me ilumina as páginas
deste livro que leio.

Por ela me deslumbro
e nem reparo na passagem
das horas.

Na escuridão, ouve-se o vulto
de outro avião que parte
para mais um voo internacional.

Só se vê a linha das suas
vigias acesas.