domingo, 25 de dezembro de 2011

Silêncio.

Desaba sobre mim
o Inferno,
como o tecto
de uma casa
em chamas.

Ou a sombra
fria
do cabedal.

Consoada.

O alho picado e a salsa
perfumaram o prato raso
da Consoada e a luz forte
acesa sobre a mesa,
afastou a solidão da noite
para um longe indeterminado.

Estrita observância da tradição.

Baladas e estrelas e
a imitação do azevinho,
voluntários e sem-abrigo
que se dão as mãos
e na rua já não passa nenhum carro
há muito tempo.

Recuso prescindir da cerimónia,
mas dispenso olhar a nave
da catedral e as palavras
do cardeal. Para quê?

Está tudo bem lá fora,
não passam carros na rua
e as famílias recolhem-se
à mesa de jantar.

As crianças têm os olhos irrequietos
presos às pinturas do papel de embrulho.

Ah, as crianças...

Que bem apurada está esta pasta
de esparregado. E o vinho do Douro
tão denso no copo. Depois, os doces
de ovos e açúcar e o café aromático,
a aguardente velha e o cigarro.

Vão acender o madeiro nas aldeias.
Ah, as aldeias...
E o rosto avermelhado
de quem lá vive...

A rua está em silêncio ainda
e faz um frio de dezembro
na noite de breu.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Viver.

São as lágrimas dos coreanos
que me destroçam agora,
os ferros calcinados das explosões
de Bagdad, os tiros furtivos
que matam em Damasco,
o genocídio arménio, o incêndio
da rua Bramcaamp.

Eu vejo que descem as gaivotas
no seu voo lento, desce o nevoeiro
sobre as praias, repetem-se os gestos
errados de quem conduz para morrer
ao fim-de-semana e cai em mim
a desilusão de tudo não ser
como os olhos inocentes deste gato
que me olha e comigo partilha
alimento, carinho e a própria vida.

Que me interessa que não os conheça !
Que tomem o avião para a Indochina !
Que não se cruzem nunca com a minha vida...

Tudo o que fui e sou me pede forças.
O que amo verdadeiramente, faz-me
continuar a viver. Um dia...

Talvez um dia, sim,
talvez...

As Teorias Selvagens. Pola Oloixarac.

" Tira-me o copo da mão e pousa-o numa prateleira. Afaga o bigode, como se desfrutasse de uma pausa antes de me comer. Puxa-me pela cintura. Tento manter uma certa distância, mas em vão: está tudo impregnado da sua monstruosa irradiação. Fecho os olhos, mas não consigo deter a investida dos seus traços de monstro a esgueirarem-se entre auréolas azuis. O vapor rançoso, a combinação do perfume e do suor, o bigode absoluto, eco dos olhos mal-intencionados, a refastelarem-.se sob a minha roupa, esse nariz picado por insetos triásicos, narinas como buracos de rochas. Basta. Nada deve deter-me. Fujo, desfaço-me dos seus braços, desabo no sofá.
Sentada, sem cruzar as pernas, o calor começa a rastejar-me pelos joelhos acima, moldando-me o corpo, puxa-me, puxa-me a boca - para a deixar escancarada, virada para ele. Devo estar completamente vermelha. Tapo o rosto com o cabelo.
( ... ) "

Pola Oloixarac, As Teorias Selvagens, Quetzal, série américas, Tradução de Margarida Amado Acosta, Lisboa, 2011, p. 115.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

De Noite.

A luz azul.

O reflexo ultramarino
na água do rio.

O carro desliza
sem parar.

Vou entrar em casa
às escuras.

E ligar a televisão
por mundanismo.

A luz repousante
acesa no quarto.

Os livros por abrir.

Vou dormir assim.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

E a água, a estrada e o cinzento amargo na garganta...

E o nevoeiro,
esse cantinho secreto
no roseiral
e a água fria do lago,
os patos e os cisnes
flutuando...

E os pinhais...

Era preciso sair da estrada,
os vales desenhavam
uma ondulação crispada
na memória.

Se eu parar, quero água,
vou beber água fria,
outra vez...

E o céu,
não se vê bem o céu,
vou ter que parar...

Onde vai ter esta
estrada cinzenta ?

Sinto a garganta
presa e a boca amarga...

A noite cai
e eu tenho que regressar.

Mas se ainda sinto
a garganta amarga...

Onde tenho a garrafa
de água ?...

Será bom
voltar?

Deslizo pela estrada fora,
já de noite, a rádio ligada...

A vida continua e a água,
onde tenho a garrafa de água ?...