domingo, 30 de maio de 2010

Noite de Maio.

Tombam as noites frescas
pelas esplanadas,
e só se vislumbra, à volta,
o interior apagado
dos apartamentos
e as janelas esquecidas,
abertas de par em par.

As crianças correm
às escuras
e as mesas estão cheias
de travessas de caracóis
e ruidosos copos de cerveja.

Eu como um prego picante,
em silêncio.

E revivo a nostalgia
dos Verões de África,
que me aperta,
ainda hoje,
o meu coração solitário.

De resto, não gosto
deste desleixo,
destes corpos sujos
em chinelos de plástico.

Mas é assim a cidade,
nas esplanadas, à noite.

E a mim, apetece-me sair.

A noite dentro de casa
abafa e oprime.

O EX-POETA. ( Malcolm Lowry )

A madeira flutua na água. As árvores
Curvam-se, lá é verde, a sombra.
Uma criança caminha no prado,
Há uma serração, vista da janela.
Conheci outrora um poeta que concluiu:
O amor não se foi, apenas as palavras do amor,
Disse ele. Foram-se as palavras
Com as quais teria pintado aquele barco.
O vermelho de chumbo nunca se impõe
Nos lívidos poentes do Cabo.
Disse-lhe que sim, que tinha toda a razão.
Ele sorriu e disse: um dia destes
Deixarei este lugar como as palavras me deixaram a mim.


Malcolm Lowry, As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar, selecção e tradução José Agostinho Baptista, Assírio e Alvim, Lisboa, 2005, p.81.

sábado, 29 de maio de 2010

Eternidade.

Outro cigarro,
a mesma esfinge.

A noite não desce,
a manhã não sobe.

Rodopiam os morcegos
de volta do candeeiro.

E passa sorrateiro
um gato negro,
debaixo dos automóveis.

Uma aragem fresca
vem varrer a rua
de beatas
e papéis velhos.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Noite Calma.

Estende-se a noite pelas ruas
cada vez mais desertas,
cada vez mais tardias.

A cidade recolheu-se
há muito
para dormir.

Vou à janela e demoro-me
com um cigarro.

Deixo-me estar depois,
na companhia de mim só.

Até me diluir
completamente
na escuridão
da madrugada.

Para a L.

Amanhã já irei rever
os teus olhos lindíssimos,

a tua beleza tão natural
e a tua simpatia, sempre
muito feminina.

E será como
se não estivesses estado
nunca ausente.

Hugh Macdiarmid. ( 1892-1978 ) Escócia.

A Pequena Rosa Branca

A Rosa do mundo não é para mim.
Para mim quero apenas a pequena rosa branca da Escócia
De cheiro agreste e doce - e que destroça o coração.
(p.1326)

( Trad. Sara Soares de Oliveira )

Rosa Do Mundo, op. cit.

Rosa Do Mundo.

Chile, Araucanos.

Canção

Bela como a prata era a minha amada.
Por sua grande beleza,
sofro agora.
Porque terá nascido o sol
Onde noutros dias morre?
E porque baixou o sol
onde noutros dias sobe?
Assim mudou teu coração,
minha amada.
(p.201)

( versão: Herberto Helder )

México, Nahuas

Eu não sei se estiveste ausente
Eu deito-me contigo, e levanto-me contigo.
Nos meus sonhos tu estás junto a mim.
Se estremecem os brincos das minhas orelhas
eu sei que és tu que te moves no meu coração.
(p.210)

( trad. José Agostinho Baptista )

Timor, Anónimo

A lua já nasceu.
O céu iluminou-se.
Eu aqui sozinho.
Tu, onde estás?

Não te esqueças, não,
De nós nesse dia.
De nós dois sozinhos
na boca do mar...
(p.518)

( Trad. Ruy Cinatti )

Rosa Do Mundo, 2001 Poemas Para O Futuro, 3ª Ed., Assírio e Alvim, Lisboa, Agosto de 2001.

domingo, 16 de maio de 2010

Silêncio, Noite Escura, Solidão.

O vulto imóvel
sentado há horas
e o fumo lento
dum cigarro esquecido.

Houve um dia...
Uma manhã azul,
como são as manhãs
de Verão,
as cores vivas
e o alegre piar
das gaivotas...

O rolo da espuma
na quebra-mar...

O aroma adocicado
dos protectores solares...

As crianças que brincam
na areia húmida?

Há quanto tempo foi?
E porquê, lembrar isso agora?

Houve outra dia,
era de noite...
A viagem,
os faróis acesos
dos automóveis,
o espaço invisível
à volta...

Uma televisão ligada,
algures no prédio.
Ou será um transistor?

O gato que dorme,
enroscado no sofá,
em silêncio.

Há quanto tempo já,
as correrias saudáveis
na Praia do Guincho?

E para quê
lembrar isso agora?

Domingo de Manhã.

Sopra o vento fino e agita
as folhas dos plátanos
numa dança leve
e o sol brilha e aquece a rua
desde manhã cedo.

No entanto,
inquieta-me o voo desequilibrado
dos pombos
e a sua incompreensível
errância.

Será que estão com fome?

Deslumbramento.

Só por palavras
poderei designar
a imensidão
do céu azul,
sobre as nuvens densas.

O mistério
da dupla articulação.

E o corpo duma voz
erecta,
sensual,
que exprime
a razão
e os dias.

As folhas expelidas
pelo vento
que o Tempo secou.

E a selectividade áspera
dum herbário antigo
feito de palavras
que não morrem nunca.

O deslumbramento
da última palavra?

Talvez sim,
talvez.

Confissão.

Sob um céu límpido
como a água pura
e um olhar de fogo
faiscando o Universo,

eu cheguei
ao limiar
de mim mesmo

e dei-me
ao vento,

à ondulação forte

e ao bailado
da Vida.