quinta-feira, 29 de outubro de 2009

As Palavras.

O limite das coisas,
o seu contorno rígido,
a cor?

O limite das palavras
é um limite
para as palavras.

Depois,
talvez inventar
a nuvem.
E imaginar
o céu.

E ver
como é bela
a fala,
como evolui
e se estende
nesse outro céu,
que é a boca.

E não haver mais
nenhum limite,
então.

As Palavras.

A Viagem.

Eu e tu,
um dia não muito distante,
melhores dias virão...

Uma tarde, eu e tu,
uma tarde inteira
para nada,
por prazer,
só.

Satisfeitos os que nos
são próximos
e só tu
e eu.

Uma tarde
dessas tardes inteiras,
só por prazer,
por nada mais.

Eu e tu,
só.

A viagem.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

As Nuvens.

As nuvens
que pintam o céu de branco,
formam-se e desfazem-se
num simples piscar de olhos.

Estas não,
de tão baixas e tão ígneas.
Carregam o horizonte
de um cinzento sujo
e, a mim, sufocam-me
de tristeza e de uma angústia
sem nome.

Oh, as nuvens
que são como farrapos brancos,
que surgem e desaparecem
num leve piscar de olhos...

sábado, 24 de outubro de 2009

Fim-de-Semana.

Passaste muito tempo longe,
visitando os mercados pela manhã,
para comprar os legumes e a fruta fresca.

Ias com frequência almoçar
peixe grelhado nas esplanadas
junto ao mar.

Tiveste tanto tempo para isso!...

Não te faltou nunca tempo
para observares a névoa
que tombava das falésias,
ou ver chapinhar os patos
nas margens junto à foz.

Terás notado, no entanto,
como é estranho e mesquinho
o egoísmo mais serôdio?

Tiveste tanto tempo
para compreender a estupidez!
Os excessos e abusos da Vida!

Por isso é que escolhias em silêncio
o tomate, ou procuravas o melhor pão,
nesses mercados abertos
ao Sábado de manhã?

Terias mesmo tempo para o fazer?

Os Pescadores.

Poucas palavras foram ouvidas
no nevoeiro dos mares
da Islândia!

Avisos, chamamentos, só,
uns e outros louvando
a proximidade para se encorajarem
nessa actividade tão perigosa.

Rudes pescadores absortos
na faina impiedosa.

O Mundo também é assim.

Desejos nobres que se confundem
com a banalidade das expressões.

" Atira!..."
" Estás aí?!... "
" À ré!... À ré!... "

Desencontro.

Ao ar livre
na noite escura,
as luzinhas ao longe,
os faróis desligados.

A brisa fresca
dos lábios
e o ardor festivo
dos abraços.

Espero, ao ar livre
na noite escura,
ver apagarem-se uma a uma,
todas as estrelinhas
que há no céu.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Neve.

Caiu a neve na Serra
e, perdido o rasto das cabras,
todo o dia os lobos uivaram.

É grande a agitação na alcateia.
Rixas, correrias, latidos de dor
e o olhar faiscando ódio
dos mais famintos.

Nos vales, apavoram-se as
capoeiras, ao cair da noite.

Todos vivem em sobressalto,
agora que o tempo mudou.

O manto branco cobre
toda a Serra.

Crepitam as lareiras e o fumo
das chaminés confunde-se
com o nevoeiro cerrado.

Agora coabitam os animais
com os rudes montanheiros.

Só os casebres perdidos de xisto
parece que sujam a noite na Serra.

E, inquietação suprema,
toda a noite os lobos uivaram.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

S.M.S. de L. P. recebido no dia 12/10/09, às 16:36:44.

" Quando é que
chega o meu
namorado? "

Talvez um Retrato.

A Lua reflecte-se límpida
nos teus olhos
de noite.

E o teu cabelo é da cor
das folhas das videiras
no Outono.

O sorriso,
arroio leve de água
pura.

Vestem-te
e calçam-te
os figurinos
mais recentes.

Nem saberias ser
de outra forma.

Por isso é que
reparam em ti,
mesmo as raparigas
mais elegantes.

Também por isso és
o orgulho dos que são teus.

A jóia mais valiosa,
porém, tens guardada dentro
do peito.

Toda feita em ouro de lei,
é o teu próprio coração.

domingo, 18 de outubro de 2009

Silêncio.

Não tragas tanta gente
para estes versos.

Já sabes que o Tempo
te sobrevive
sempre.

E o teu silêncio
tem luz.

Solidão.

Percebo claramente,
eu só.
A rega dos jardins,
como se faz.

Diário ( Outubro )

Há um espelho à entrada de casa.
A sua superfície lisa, limpa
e transparente.

No Porto de Luanda,
no cais do Niassa
à noite.
Torneiras abertas para o mar.
Essa paz envolveu-me
para sempre.

A solidão nocturna dos carros do lixo.
Os semáforos com laranja intermitente.
Os homens da Câmara que regam as ruas
de madrugada.
A noite sempre escura, sempre igual.
A triste vida de Lisboa.
E só hoje o escrever.

... e digas quando vens a Portugal.

Depois, tudo se dissipa
nessa nuvem furiosa...

Esta neblina perdida
das tardes de Outubro.
As colinas dos arredores
e os seus buxos e arbustos.
A linha do teu corpo
envolta no azul.

Eu não esqueci nunca
as palmeiras na praia
e a extensão branca da areia.

Não cheguei a adormecer.
Fui sempre
um outro.

O Amor 2. ( Para a L. P. )

O amor é uma rotina
saborosa,
como o lançamento
de foguetões,
também é.

Deslizam os golfinhos
na superfície da água
e o amor estende-se
e eleva-se
como uma asa-delta.

O amor também vive
da ausência
e da separação.

É bom interromper.
O amor, não.

O Fim.

Depois
um pássaro,
um dia,
voando sobre a rua,
voaria só.

Arraia-Miúda. ( Fernão Lopes )

Oh, o povinho das ruas de Lisboa,
do Alto do Pina, ou das
Avenidas Novas!

O povinho das mines
e das camarias,
que trata as miladies por
minha senhora
e lhes arruma os carros
por cinquenta cêntimos!

O povinho que vê na política
a verdadeira roubalheira e prefere
falar do Benfica com o Sr. Engenheiro,
para lhe ensinar os passes de mágica
do Aimar e do Cardozo.

Desce a menina ao café
e cumprimenta o povinho
com um Olé!

E em dias especiais,
lá para as Festas dos Santos,
vão todos juntos a Alfama,
aos arraiais!

Oh, o povinho das ruas,
que é todo tu-cá
com a viúva do Sr. Doutor.

O povinho de Lisboa,
que transpira Liberdade,
Benfica e Igualdade!

Amanhã bem cedo
lá estará aquele na Praceta,
a levar os cigarros ou o jornal
à viúva do Sr. Doutor,
a troco de uma graça
ou por um especial favor.

Oh, as gentes de Lisboa
que mais parecem os pardais
a chilrear pelas ruas
e vem de manhã cedo
fazer o biscate
ao Sr. Neves da Mercearia!...

Paparazzi.

Não viu as palmeiras
abertas em leque,
o seu alfabeto antigo
desenhado numa moldura
azul.

Um muro branco
limitava o seu olhar.

Não viu a água azul
e a relva molhada,
as cadeiras de descanso
abertas e vazias
em redor.

Por isso não viu
se estavas, se ias
essa manhã ao jardim,
para ler ou simplesmente
dormitar.

A varanda da sua casa distante
expunha-o apenas ao azul do céu
e ao silêncio da rua deserta,
alguns metros mais abaixo.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Abandono.

Evapora-se
invisível
como se se esfumasse.

Perde-se
imperceptível
a pulsação.

A respiração,
a ânsia
de chegar.

Dilata-se o Tempo
e estende-se
vazio.

Só.
O Tempo.

Passagem das Horas.

Uma pálpebra só.
O silêncio da solidão
nocturna.

Um gesto subtil
e o olhar sujo,
escurecido.

O telefone pousado
em silêncio.

A mudez
das paredes brancas
da casa mergulhada
no silêncio.

A solidão nocturna.

Uma pálpebra só
se move
imperceptível.

... as asas! ( Maria Teresa Horta )

As asas
incertas
nas asas
bordadas
do avesso.

A chama,
o gume
dos corpos.

Solta
a cabeça
na cabeceira
de linho.

O suor
das tuas asas
abertas.

A pétala.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Infância.

O que deixei perdido
nos areais do Guincho,
em Setembro de sessenta e um?

Conchas, pedrinhas, ou algas sujas?

Um punhado de areia
lançado contra o vento
e o seu retorno, ferindo os olhos.

O voo lento das gaivotas,
ou o sabor seco na garganta
da água do mar?

Nada perdi nessas dunas
do Guincho, no fim do Verão
de sessenta e um.

Trago ainda comigo o aroma
dos pinhais
e a imensa solidão do mar.

A vontade de desvendar os mistérios
encerrados há séculos nas escuras
salas do Forte de S. Julião.

E a memória branca do amor,
ao atravessar a Praça do Comércio
no regresso a casa,
e que ainda sinto hoje,
por Portugal.

Eugénio de Andrade, O Peso da Sombra, Obras de Eugénio de Andrade/16, Limiar, 3ª Edição, 1989

p.54

Nem sempre o corpo se parece com
um bosque, nem sempre o sol
atravessa o vidro,
ou um melro canta na neve.
Há um modo de olhar vindo
do deserto,
mirrado sopro de folhas,
de lábios, digo.

p.63

Não oiças essas vozes que não param
de crescer a caminho do inverno,
os lugares onde o corpo de erro
em erro abdica de ser corpo
são mortais, não oiças essas vozes
onde o sol apodrece, nunca mais.

p.66

Passaste os dias a pôr sílabas
sobre sílabas, dorme, estás cansado.
Não são do rio essas luzes,
dorme, já não há rios.
Nos pátios do outono a noite
já soltou os seus cães, dorme.

p.69

Oiço correr a noite pelos sulcos
do rosto - dir-se-ia que me chama,
que subitamente me acaricia,
a mim, que nem sequer sei ainda
como juntar as sílabas do silêncio
e sobre elas adormecer.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Choque.

Ficou tanta coisa por explicar.
O navio naufragado
e a forma como se espalhou
no fundo do mar.

Os corpos projectados
no acidente de automóvel.
Os últimos instantes
do acidente irreversível.

Jane Birkin, aos 62 anos,
diz saber qual é a música
na sua morte:
Je t`aime... moi non plus.
E de si própria,
imaginará saber?

O retorno dos olhos,
o ricto dos lábios
e as mãos...

Temporal em Lisboa.

Chove forte às sete e meia.
Lisboa inunda-se de lodo
e lixo.

Mulheres em havaianas
varrem os cafés
na cidade baixa.

Quando falam para a reportagem de tv,
mostram as bocas desdentadas
e o cabelo apanhado, num desalinho.

Noite.

A insistência da chama,
o bailado vertical do lume
e o granulado da luz.

No conforto quente da sala,
não se está nunca só,
quando se está a pensar.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Outubro.

Tardes de Outubro junto ao mar,
a areia fria e o sabor a sal
dos cigarros fumados com sofreguidão.

Rumor de cascata que desaba persistente
e as tuas mãos, os teus ombros
molhados da espuma do mar.

Tardes de distracção e luz agreste,
de pinhões e café quente.

Tardes de secura fresca
e palavras dispersas.

Tantas palavras dispersas
e o aroma frio da água salgada.

E o Tempo imparável,
tão escasso já.
Os cigarros apagados
nos cigarros.

Tardes de Outubro junto ao mar
e o Tempo a escoar-se,
tão perto de nos estatelar
noutra noite tão escura.

Memória dessas tardes duma vida inteira,
para tu esqueceres depois.

Mas só mesmo depois,
meu amor.

Chuva.

De repente, começa
a chover.

Ainda o Sol se insinua
nas persianas
e a água a cair,
forte bátega de Outono,
tão passageira ainda.

O ar fresco entra
pelas janelas e vão
adormecendo os ruídos,
ao fim da tarde.

O nosso último dia de praia,
em S. Lourenço...

Eu e tu, quase só,
a areia granulosa
e a bandeira vermelha.

Recordas-te ainda?

Sobre Ti. ( Nunca um Retrato )

Menina, sim.
Sempre o será.

Doce e meiga,
também.

Resoluta e
destemida, sempre.
Sempre.

Óleo denso de forte aroma,
ou têmpera leve,
água pura, só.

A mulher mais bela,
também, claro.

Para sempre,
ou já agora.

Paisagem de Outono. ( Para a L. P. )

Paisagem de Outono,
tecida de suavidade
e silêncio,
ao meio da tarde.

Árvores que amarelecem
adormecidas pelo mistério
da vida vegetativa.

Há uma frescura no ar
que nos lava os olhos
e os acostuma à doce
diluição do horizonte.

A água do lago é um espelho
de transparências onde a paisagem
mergulha, como se flutuasse.

Espero na urdidura
da tela ver surgir
as aves, pela manhã.

E desse bordado paciente,
que cresça o musgo
em cada pedra.

Se a tua mão laboriosa
foi transformando o Outono
em sinfonia,
é porque emprestou à Natureza
a tua própria sensibilidade,
tão serena
e criadora.

Tombam agora as folhas mais secas
e já rolam revoltas,
empurradas pelo vento
que começou a soprar.

3 de Outubro de 2009.

( Pintura em acrílico sobre tela, 16,5x16,5, de L. P. )